Liliana Poesia e história nas águas do Rio Capibaribe
André Uma cidade e seus obstáculos
Felipe "Saudade", teu nome é carnaval
Rosildo O parque, o homem, o canto
José Júlio Histórias das ruas e teatro como resistência
A cidade passa por aqui
O Recife através das histórias de sete moradores. Dos bairros que habitam e onde circulam surge a vida de uma cidade que não é só o concreto das ruas e avenidas, nem a pressa do trânsito às vezes caótico; tampouco tem apenas o ritmo dos que seguem apressados. Dos rios e das ruas emergem histórias de uma cidade que passa às vezes sem ser notada. E como quem observa com atenção, contamos histórias de vidas que formam um corpo de 1,6 milhão de pessoas únicas, interagindo e construindo o que chamamos de cidade.
Conte sua história!
EXPEDIENTE
Diretora de redação: Vera Ogando
Edição: Paulo Goethe | Argumento e reportagem: Juliana Cavalcanti
Edição de arte, multimídia e finalização: Jaíne Cintra
Fotografias: Nando Chiappetta
Imagens: Nando Chiappetta e Rafael Marinho
Edição de imagens: Rafael Marinho e Renata Portini
Design e desenvolvimento: Jota Bosco
Quem circula por Beberibe deve conhecer a voz que acompanha o dia a dia do bairro há 20 anos. "É a sua rádio Viva Voz de Beberibe. Não perca a hora! Não perca a hora!", diz aos que seguem para o trabalho e para a escola logo no primeiro horário do dia. Nas paredes do Boxe 28 do Mercado de Beberibe espelhos, recortes de jornal, alguns bibelôs e livros mostram que a mulher que comanda a programação é temente a Deus e tem gosto musical variado.
Do brega romântico a hinos religiosos, há espaço para vários gêneros musicais na programação. "Não se interrompe uma música", atesta a locutora, para emendar com uma série de anúncios pagos pelos comerciantes locais.
"Por chamada é R$ 2, semanal é R$ 20 e mensal é R$ 80. Mais de um mês, eu entro em acordo com ele", explica Ana Patrícia, contando que a atividade começou com seu pai, Heleno do Carro de Som, hoje com 78 anos. Do bairro que ela considera tranquilo, comemora não ter que anunciar mais com tanta frequência crianças perdidas pelo mercado. "As mães vinham com os filhos fazer compras e esqueciam. Uma vez um menino ficou aqui um dia inteiro e a mãe só voltou no fim do dia para pegar. Ele chorou da hora que chegou até a hora que foi embora. Fiquei preocupada".
Entre as notícias que lê diariamente para os ouvintes, dá preferência aos anúncios de emprego, às informações sobre mudanças no trânsito da cidade e ao horóscopo do dia. "Daqui a pouco eu volto com Libra, Escorpião, Aquário e Peixes. Agora são sete horas", anuncia a locutora que acorda Beberibe.
A Rádio Viva Voz é uma das 192 rádios comunitárias de Pernambuco. Pode ser ouvida na feira livre, no estacionamento do mercado, nas três praças centrais. "Quem sai do subúrbio pra cidade vai ouvir. Quem vem da cidade pro subúrbio vai ouvir. Eu gosto muito do que faço. Trabalhei numa escola um ano, mas não tinha vocação. Fiz um curso básico de radialismo. Faz 20 anos. Gosto de trabalhar com rádio, tenho compromisso com meu povo. Faço parte da história de Beberibe".
Patrícia acorda antes do sol nascer, no Alto de Casa Amarela, e cumpre uma rotina que inclui tomar café da manhã, alimentar os animais de estimação – um gato e um cachorro – se arrumar e seguir para o trabalho para iniciar a programação da rádio pontualmente às 7h. No caminho ela compra os jornais que serão lidos durante o dia e antes de começar, passa uma vista nas primeiras notícias que serão o "bom dia" dos moradores do bairro.
A fala apressada, a voz firme, a gargalhada contagiante, a vaidade de quem combina os acessórios com a cor do esmalte. Às vezes é reconhecida pela voz. De tempo em tempo, passa alguém que pára para conversar com ela. Não gosta de falar de quantas vezes já foi casada e diz que não está procurando namorado, nem gosta de sair à noite. "Sou caseira. Homem aperreia demais, quer mandar, e eu gosto da minha liberdade".
A programação da Rádio Viva Voz segue até às quatro da tarde. É quando Patrícia descansa um pouco e se prepara para a segunda etapa do expediente. Está cursando o ensino médio no Colégio Pedro Celso. Pensa em fazer curso de cuidadora de idosos e ter uma segunda ocupação. Estuda até nove e meia da noite e, da escola, segue de volta pra casa. Jantar, dormir e acordar novamente às 3h para reiniciar a rotina.
Wilson
A rotina da cidade que não para
O homem que vende caldinho na praia mudou de vida num momento de adversidade. De um lado pra outro, hoje seu escritório é ao ar livre e esta é sua maior alegria. Numa cidade com mania de grandeza, Wilson ri quando pergunto se ele é o Rei do Caldinho. A praia é um território livre, com vários reis e rainhas da gastronomia popular. São monarcas de vários sabores – oferecendo ao paladar uma diversidade de alimentos e temperos difíceis de enumerar.
O fato é que quando o sol começa a nascer no Ibura, também começa a produção diária na casa de Wilson. Por dia, só de caldinho de feijão, podem ser mais de 100 litros. Da cozinha saem ainda os de camarão, peixe, mocotó e macaxeira com charque. Tudo feito e vendido no mesmo dia. O produto não pode ficar passado, muito menos estragar.
A qualidade é atestada pelos clientes que há 20 anos dão o sustento da família e de vários amigos que trabalham para o Caldinho de Camarão do Wilson. "Apesar de na camisa estar escrito 'Caldinho de Camarão', o que mais vende é o de feijão. A gente mandou fazer umas camisas só com 'Caldinho do Wilson', porque muita gente deixava de tomar porque achava que era só de camarão", explica o microempresário, enquanto serve um caldinho e outro na Praia de Boa Viagem.
A proporção é de 5 caldinhos de feijão para um dos outros sabores. E além de Boa Viagem, Wilson espalha vendedores em nove faculdades, no polo de móveis do Centro do Recife, em concessionárias de veículos, farmácias, restaurantes. A atividade começou depois de ser demitido de uma gráfica, em 1991. Começou seguindo para Boa Viagem com oito garrafas de caldinho por dia. O preparo, até hoje, é da esposa, Patrícia. Na verdade, Wilson batiza a empresa, mas a dona do tempero é Patrícia. Ele administra, contrata e paga os funcionários, faz as compras, mas quem dá o toque especial aos caldinhos é a mulher.
Os caldinhos são gostosos, o negócio foi crescendo e hoje Wilson não se vê fazendo algo diferente. Com os dois filhos criados, Wilson chega a colocar até 20 vendedores espalhados em vários pontos da praia na alta temporada de verão.
A mulher, dois filhos, quatro sobrinhos, vizinhos e amigos da família são os funcionários da empresa informal. Todos são chamados de "Wilson", mas não se incomodam com isso. É a marca do sabor que carregam nas garrafas e que poderia se chamar Patrícia, a companheira e cozinheira da microempresa.
Em Boa Viagem e nos outros pontos de venda, Wilson enfrenta a concorrência não apenas de caldinhos, mas de uma infinidade de alimentos vendidos nas ruas. Segundo a Prefeitura do Recife, são 476 vendedores cadastrados e outros 1.800 informais apenas na Zona Sul do Recife.
"Acho que cada um tem seu espaço. A gente vira companheiro também; se encontra toda semana. Não me preocupo com a concorrência não. Gosto da praia, da freguesia, escuto as sugestões, tento botar em prática as dicas. A gente tem folga duas vezes por ano, no inverno, quando tá chovendo. Mas mesmo quando a gente tá de folga, viaja pra praia", diz Wilson, lembrando que mesmo quando chove, não deixa de percorrer o comércio, nos dias de sábado, pra vender os caldinhos.
São 12 meses de trabalho por ano. Ele sabe que a freguesia é conquistada não apenas com a qualidade, mas com a presença. E que o sol e às alternativas à praia são essenciais quando o inverno chega e as vendas caem.
Liliana
Poesia e história nas águas do Rio Capibaribe
Se os rios que cortam o Recife são inspiração para poetas de várias gerações, as histórias que Liliana conta no passeio de barco por entre os edifícios históricos e por baixo das pontes centenárias fazem jus aos versos e ao desejo de uma cidade mais humanizada. Das histórias narradas por ela, das pesquisas para informar quem se junta a ela no Catamarã Veneza, cresceu um amor pelo Recife que a fez encampar algumas lutas por melhorias no centro da cidade.
O início foi há 13 anos, a partir de uma dor: a morte repentina do marido que tanto gostava de navegar. A continuidade do projeto, mesmo depois de recolher seu próprio barco, o Maurício de Nassau, veio do amor pela cidade e da alegria de conhecer todos os dias gente diferente. "As águas de Paulo eram as do mar; as minhas são o Rio Capibaribe. Durante muitos anos ele ia velejar e eu o esperava no Marco Zero, embaixo de uma grande árvore que havia ali. O sonho dele era dar a volta ao mundo num veleiro. Ele partiu sem realizar este sonho, que talvez não fosse possível".
Depois de 11 anos no Maurício de Nassau e dos passeios que fizeram a fama do catamarã, Liliana resolveu ancorar o barco, cansada da administração do que chama de 3 Ms: marinheiro, mecânico e motor. Pouco tempo depois foi chamada para guiar o passeio no comando do Catamarã Veneza. Sem as preocupações técnicas e burocráticas, hoje ela faz o que mais gosta: contar histórias e recitar versos sobre o Recife, navegando os rios Capibaribe e Beberibe.
Neta do cineasta italiano Ugo Falangola – autor do documentário "Veneza Americana" (1925), sobre o Recife – Liliana se inspirou nas viagens que fez na Europa para roteirizar o seu próprio passeio guiado. "Muita coisa eu fui pesquisar a partir das perguntas que me faziam no barco. As informações sobre o Parque das Esculturas eu ouvi do próprio Francisco Brennand. Olhando o Recife da perspectiva do rio, a gente vê uma cidade que não existe mais. Muita coisa mudou", diz.
A vida do comércio do centro da cidade, o auge do Cinema São Luiz, as lojas, as casas de chá e confeitarias frequentadas antes do surgimento dos shoppings centers formam um passado hoje distante na vida da região. Liliana lamenta a degradação dos locais que mostra com tanto orgulho.
Pontuando as histórias surgem poemas e músicas de artistas que se inspiraram no Recife. Renato Carneiro de Campos, Manuel Bandeira, Augusto dos Anjos, Capiba inspiram o navegar suave da embarcação.
A falta de manutenção do Parque de Esculturas de Francisco Brennand; a pintura gasta dos casarios da Rua da Aurora; a estátua de Capiba um pouco perdida em frente à sede dos Correios; e o abandono da Cruz do Patrão. São algumas das bandeiras que carrega.
"Homenagear Capiba seria colocar a estátua na Av. Rio Branco, em frente ao Banco do Brasil, onde ele trabalhou por mais de 40 anos. Em frente aos Correios até roupas estendem em cima", lamenta. Para a Cruz do Patrão – atualmente isolada dentro de uma área arrendada pelo governo a uma empresa de pesca – Liliana propõe uma contemplação do pôr-do-sol.
O Catamarã Veneza para em frente ao monumento construído no Século 18 para balizar os navios que atracavam no Porto do Recife, justamente ao entardecer. Cercado de histórias, local onde eram feitos rituais da regilião africana no período colonial e possivelmente também um antigo cemitério, atualmente poucos têm acesso ao marco histórico.
"Pouca gente sabe a história da Cruz do Patrão e muito poucos sabem que daqui é possível ver um dos mais belos pôr-do-sol do Recife. Se em João Pessoa eles ouvem o 'Bolero de Ravel' no pôr-do-sol, aqui nós poderíamos tocar o 'Bolero de Capiba', uma composição belíssima e pouco executada", sugere.
André
Uma cidade e seus obstáculos
Quem vê a desenvoltura com que André circula por entre os veículos no Centro do Recife não imagina os percursos tortuosos que faz para cumprir as atividades diárias. Numa cidade sem calçadas adequadas e cheia de obstáculos, ser um cadeirante que vivencia as ruas é um desafio. André disputa espaço com carros, ônibus e bicicletas, muitas vezes no asfalto, com uma velocidade e uma disposição que surpreendem.
Há oito anos, desde que sofreu o acidente na piscina de um parque aquático, ele convive com a determinação e não se deixa abater. A maior mobilidade consegue porque usa uma cadeira monobloco – comprada de segunda mão e reformada para atender suas necessidades.
"Eu trabalhava em restaurante, sempre trabalhei de moto e nunca tive nada. Um dia, fui na piscina e aconteceu esta fatalidade. Dois anos depois eu me aposentei. E mudou tudo", lembra ele, hoje com 46 anos. André acabou se afastando dos antigos amigos e encarando uma nova rotina.
"Eu era uma pessoa mais ativa, mais dentro do sistema. E quando você está dentro do sistema, do trabalho, você não presta muita atenção nas coisas. Hoje eu tenho mais tempo de prestar atenção, de refletir melhor. Isso mudou. Não acabam as amizades, mas você perde o vínculo".
Pelas dificuldades enfrentadas nas ruas do Recife, André passou a observar um tratamento inferior na sua condição de cidadão, já que não consegue exercer o direito de ir e vir como as demais pessoas. Apesar de nunca ter sofrido preconceito, é no dia a dia que enfrenta as mesmas dificuldades que outras 40 mil pessoas com alguma deficiência motora que vivem na capital pernambucana, segundo dados do IBGE de 2010.
"Acho que teria que demolir tudo e construir de novo", diz, sorrindo. As rampas mais acessíveis são as feitas para os carros; as calçadas são esburacadas e os ônibus – mesmo com a boa vontade de motoristas e cobradores, deixam a desejar.
"Tem dias de parar mais de um ônibus e os elevadores estarem quebrados. Já aconteceu de o motorista descer, baixar o elevador, e na hora de subir, simplesmente o negócio não funcionar. Eu saí, peguei outro ônibus e aquele ficou ali, quebrado. Porque se o elevador trava, o ônibus não anda mais. E os passageiros ficaram arretados. Mas o que eu posso fazer?", pergunta, apenas de modo retórico, pois sabe que a responsabilidade não é sua.
Se a opção é o táxi, também não tem certeza se chegará ao destino. Sem treinamento de como lidar com cadeirantes, muitos taxistas recusam a corrida. As desculpas vão desde não saberem manusear a cadeira de rodas a não quererem acomodar o equipamento dentro do veículo. Mesmo driblando a maior parte dos obstáculos, às vezes ficou impossível manter algumas atividades por falta de acesso aos locais.
As obras na Av. Caxangá, por exemplo, atrapalharam a frequência de suas visitas aos filhos. "Aqui no centro, o único lugar que eu consigo circular na calçada é a Avenida Conde da Boa Vista. No resto, eu tenho que ir pela rua mesmo. Se você vai para o subúrbio, a situação piora. Já desisti de fazer fisioterapia e acupuntura porque não conseguia chegar na clínica, ali perto da Católica (Unicap)".
Depois de todo esse tempo, ele e um colega, através de uma ação do Ministério Público, vão receber uma cadeira de rodas nova do SUS – o que deve ajudar a sua mobilidade. Mas André sabe que se locomover não depende apenas da cadeira de rodas.
"Precisa ter calçadas planas, rampas de acesso bem construídas, elevadores. Não adianta ter uma cadeira boa se o acesso é em rua de paralelepípedo. Mas eu não posso me acomodar. A vida continua e a necessidade vai bater na sua porta. Ou você se adapta, ou você se adapta", diz ele.
Felipe
"Saudade", teu nome é carnaval
Para quem brincava nos descampados do bairro de Casa Forte e pescava de molinete com o avô no cais do Porto do Recife na infância, a cidade mudou bastante. O trânsito intenso, os altos edifícios, a transição do comércio de rua para os grandes centros de compras têm impacto no olhar de Felipe, mas ele faz questão de dizer que não é saudosista.
"Eu gosto do presente. Principalmente quando você é jovem, o que você vivencia fica mais guardado, a vida parece que flui mais fácil. Mas todo tempo é bom, desde que você saiba viver com profundidade", reflete, enquanto lembra dos antigos carnavais e das músicas que o aproximaram do Bloco da Saudade e da atividade de produtor cultural.
O amor pelo Recife e pela cultura popular evoluiu durante muitos anos, até ele decidir largar o comércio e se dedicar à cultura. Amante dos antigos carnavais, Felipe lembra de ir muito pequeno com o pai à Pracinha do Diario ver as troças desfilarem nos dias de folia. "Eu não tinha ideia do que exatamente era o carnaval, mas o que você vê nesta idade, acho que leva para o resto da vida".
Ladeira 15 de Novembro, carnaval de 1982, Felipe e a esposa, Cláudia, tinham vindo do Janga para a Cidade Alta ouvindo "Evocação N. 1", de Nelson Ferreira, quando cruzaram com o recém-nascido Bloco da Saudade. "O encantamento foi na hora. Foi uma memória de criança, com aquilo que eu estava ouvindo no rádio e encontrei no meio da rua, na Ladeira do Varadouro. Isso me emocionou", recorda.
O casal se juntou ao bloco na rua e depois ao grupo de jovens intelectuais de classe média que desejavam resgatar não apenas as músicas, mas as emoções de antigos carnavais. "Depois a gente participou como integrante; as fantasias feitas em mutirão, por nós mesmos. Podemos dizer que fundamos um clube de frevo e as pessoas nos devolvem essa emoção com o mesmo carinho", diz, explicando que o bloco desfila apenas um dia em Olinda e que as demais atividades acontecem no Recife, onde vive a maior parte dos integrantes e onde as ruas parecem chamar os foliões para as ocuparem.
Já faz 40 anos que o carnaval do passado virou o carnaval do presente e o Bloco da Saudade incentivou a criação de muitos outros blocos líricos que a cada festa de Momo tomam conta das ruas do Recife e de Olinda.
Dos primeiros ensaios, ainda na década de 1970, aos acertos de marcha na AABB (nos anos 80) e à grande prévia que acontece todos os anos na sede do Clube Náutico Capibaribe, no bairro dos Aflitos, o Bloco da Saudade viu crescer o número de admiradores. Apesar de ainda ser feito com o mesmo amor e dedicação pelos hoje jovens senhores e senhoras, o "clube de frevo" ganhou uma dimensão que surpreende os diretores da agremiação.
"Há 30 anos não tinha essa característica de acerto de marcha. Vinha aquele grupo de amigos. Narciso do Banjo trazia a orquestra dele e todo mundo cantava à vontade. Não tinha ingresso, não tinha nada. Quando terminava a gente passava o chapéu. Foi crescendo, atraindo mais gente e teve que ter um mínimo de organização para atender as pessoas. Mas a sede do bloco é a casa de Isabel", continua Felipe, explicando que hoje em dia o carnaval é pensado 10 meses antes e incorporado à vida do grupo.
Certo dia, pegou um ônibus apressado, tentando chegar à Rua da Imperatriz para a saída do Bloco da Saudade numa semana de pré-carnaval, e reparou que ao seu redor estavam senhores, senhoras, crianças, que assim como ele seguiam para o desfile, ansiosos pelo que iriam encontrar. "É muita responsabilidade isso. Passo ali na Rua da Imperatriz e fico imaginando o carnaval. Um bocado de 'alminha' olhando o Bloco da Saudade. Parece que tem uma coisa ali, no ar. E as pessoas falam que também tem uma coisa diferente. É porque também estão emocionadas, imbuídas de um sentimento especial".
Quando o desfile acaba, o carnaval termina e a rotina volta ao normal, Felipe se reencontra com o centro do Recife para realizar atividades cotidianas. Ao caminhar pela região que faz parte de sua vida e de seu imaginário, num tempo de tanto imediatismo, deseja poder ver a reocupação da área, o retorno de uma movimentação que não seja só de passagem, em ruas que ficam desertas tão logo fecha o comércio.
Rosildo
O parque, o homem, o canto
A rotina no parque raramente muda. No caminhar apressado de quem se exercita, na brincadeira das crianças, no sol e na chuva, os dias passam. Por entre as árvores, ou no meio do caminho, algumas pessoas trabalham sem serem notadas. Uma cantoria se destaca. É alegre; é solene. Fala de amizade; religião. São cânticos.
Rosildo sai de casa, no Vasco da Gama, com o nascer do sol, e segue a pé para o trabalho. Vê o Recife acordar do alto do morro, desce as escadarias com outros trabalhadores que despertam com a cidade. Nas ruas, o trânsito intenso, as pessoas apressadas, o Recife agitado para mais um dia.
"Eu venho devagarzinho. É ônibus, é carro pequeno, tem que prestar muita atenção. Às vezes o sinal tá quebrado; carro de um lado e de outro. Eu vejo um lugar bom de se viver. Tem a violência, mas não é feito São Paulo, feito o Rio, e minha família tá aqui".
São 30 minutos caminhando até que o cenário muda. Dentro do parque; a correria é dos que buscam a boa forma; o barulho é das crianças nos brinquedos. O gari tem a mesma rotina há 18 anos, cuidando da limpeza de um setor do Parque da Jaqueira. Além dele, outras 14 pessoas trabalham na mesma função.
A varrição tem um ritmo, uma ordem, e no caso de Rosildo, também um repertório – que ele canta enquanto cumprimenta os que passam e se diverte com as brincadeiras dos que acham bonito e dos que parecem se incomodar.
Casado há 29 anos, seis filhos: Talita, Tamires, Tiago, Taiane, Taís e Tales. Quatro vivem com ele e a esposa. Sempre que pode, depois do expediente visita a mãe em Nova Descoberta.
Rosildo já foi alimentador de máquinas na antiga Fábrica da Macaxeira; foi balconista de padaria; e fotógrafo de festas, batizados e documentos – até ser contratado como gari.
Lembrança triste é a morte do irmão – que se afogou ao tentar salvar a filha, na Coroa do Avião, em Itamaracá. "Foi tentar salvar a menina dele, mas não sabia nadar... é assim mesmo"
Na tecelagem o trabalho era durante a madrugada. As lembranças são de um tempo em que Pernambuco era um polo têxtil importante e no Recife se concentravam grandes tecelagens. "Tava aprendendo a ser tecelão, quando fechou, na época de Collor. Fechou e não tem mais nenhuma. Tudo se transformou. Onde hoje é o Carrefour, antes era a Minerva", recorda.
A padaria era dos parentes e a fotografia complementava a renda. "Passei um tempo tirando foto. De aniversário, batizado, 3x4, 5x7. Usava uma Zenith, ou uma Olimpikus manual. Botava pra revelar na Canadá, na Tabira, naqueles estúdios. Foi quando Deus abriu essa porta pra mim", diz, lembrando de quando foi contratado pela Emlurb.
O salário de gari não é muito, mas é certo. E para criar seis filhos e tocar a vida com dignidade, a certeza do emprego foi sempre importante. Do dia a dia, reclama só de quem joga lixo no chão. "Tem gente que vê a lixeira, mas joga no chão. Eu não digo nada, só olho".
Para complementar a renda, há 17 anos comprou uma carrocinha e trabalha como pipoqueiro, sempre nos finais de semana e feriados. Parece cantar essa simplicidade, mais do que exaltar a religião. Os hinos falam de uma salvação que está na vida simples e no valor da amizade e do amor ao próximo.
A jornada dupla, de gari e pipoqueiro, é quase uma personalidade dupla para quem o observa. Na varrição, o trabalho no sol e na chuva; concentrado, solitário, alegre. Nas tardes vendendo pipoca, a popularidade de quem oferece algo que todo mundo gosta. A piada de vendedor, a conquista do cliente.
Doce ou salgada, antes de terminar o preparo já tem fila de espera. A que vende mais é a doce – preferida das crianças. "A minha pipoca é light, pode comer à vontade", diz, sorrindo. Ao contrário do gari, o pipoqueiro não canta. Mas puxa conversa com as crianças e brinca com os adultos. No fim de cada mês, essa renda extra serve para pagar a conta de luz, a conta de água. Um complemento que faz diferença.
Quando está de folga, Rosildo leva a família pra igreja, ou pra fazer piquenique no Parque 13 de Maio, ou no Horto de Dois Irmãos. "Leva biscoito, bolo, guaraná. Senta num espaço, forra e faz um piqueniquezinho, pra descontrair".
Do Recife, sabe que gosta. Não moraria noutra cidade. É onde está sua família, onde estão seus filhos. "Eu vejo um lugar bom de se viver".
José Júlio
Histórias das ruas e teatro como resistência
As vidas que povoam a cabeça de José Júlio são mais do que personagens de um teatro de bonecos. No Mamulengo Jurubeba, os 15 atores têm vida própria e personalidades únicas. Criados com carinho, maturados nas histórias das ruas de uma cidade efervescente, com diálogos que reproduzem uma realidade tão atual que atrai e encanta. Júlio é mamulengueiro há 26 anos e suas companhias no "palco" foram surgindo da necessidade de se expressar e questionar a sociedade.
Se o mamulengo surgiu na China com os bonecos de sombras, há cerca de 6 mil anos; se apareceu na Idade Média, quando cada rei tinha o seu teatro de mamulengos para divertir a corte. Ou se no Brasil foram os jesuítas que usavam os bonecos como presépios vivos para catequizar os indígenas. Júlio conhece todas as versões, mas prefere à de Januário de Oliveira, o Mestre Ginu, mamulengueiro do Recife nas décadas de 60 e 70, morador da Mustardinha, e que morreu em 1977.
"Ginu contava que a tradição do mamulengo surgiu nas senzalas, com os negros escravos. Eles usavam os bonecos para criticar a realidade de opressão que viviam. E é esta tradição que se mantém até hoje. Você vê uma peça como As Bravatas e Professor Tiridá, que fala da questão da terra, da exploração do trabalhador, usando a ironia para criticar a sociedade. Isso na década de 60 e 70 o governo não aceitava. Então muitos mamulengueiros desapareceram, por conta da mensagem de conscientização que eles propagavam", ensina José Júlio, um dos poucos mamulengueiros do Recife hoje em dia.
Apoiado na pesquisa de Hermilo Borba Filho, no seu "Fisionomia e Espírito do Mamulengo" (1966), Júlio foi criando seus personagens, moldando suas personalidades, no intuito de ser mestre e viajar contando histórias. O mestre Ginu dizia que para ser mamulengueiro era preciso ter pelo menos sete vozes. Júlio tem 15 personalidades que se reversam nas mais diferentes histórias.
Professor Tiridá (mestre de cerimônias), Dona Quitéria (a viúva), James (o filho), Simão (o dançarino), Tertuliano (o veio), Roberval (o gringo), Etílico (o bêbado), Cabo Féla (o soldado), Neide (a loira), a Morena, o Político, o Diabo e o filho do Diabo (um menino bom), além da cobra e do boi (que têm cenas, mas não têm diálogos).
"Eu leio muito. Vejo três, quatro, cinco jornais. Talvez nem seja o mamulengo, seja para minha curiosidade mesmo, pra saber das coisas. Eu pego muita coisa do mamulengo em bar, em ônibus, na rua. Sempre observo o povo. É daí que tiro as histórias", revela o hoje morador do bairro da Imbiribeira, que quando era pequeno já pescou caranguejo de andada no Bairro do Recife.
"Eu adoro essa cidade. Fico doente porque o povo joga lixo na rua. Outra coisa que está acabando com a nossa cidade são esses 'pirulitão', esses arranha-céus, essas torres. Eu tenho a sorte de trabalhar no centro. A Praça do Diario é o melhor lugar pra fazer teatro. Quando eu era adolescente tinha tocador de pandeiro, muito artista. E hoje a gente vê que estão querendo acabar com tudo", reflete.
Para se manter, Júlio trabalha como programador de sistemas e computadores – algo bastante diverso do mundo dos mamulengos, mas para ele, atividades que se complementam. "Parece uma coisa assim, meio doida na minha cabeça; não sei como eu faço. Do jeito que eu faço boneco, eu faço sistema. Sem saber", ri, para completar: "Mas dá uma adrenalina também. Quando você desenrola um problema e vê onde está acontecendo o erro, você tem alegria. É por conta dessas alegrias que eu vou fazendo e gostando de fazer as coisas".
Júlio viajou o Brasil fazendo teatro e se apresentando com o Mamulengo Jurubeba. Morou em Maceió e no Maranhão um tempo e voltou para o Recife. Conheceu os grandes mestres de Mamulengo do interior, os artistas de Glória do Goitá, de Garanhuns. "Conheci Zé Lopes, Danilo, Valdeck de Garanhuns, que pra sobreviver de bonecos moram em São Paulo", diz.
Com a sua arte vem encantando públicos em vários estados. Já se apresentou em festivais no Recife, em São Paulo, no Rio de Janeiro e atualmente mostra sua arte aos domingos, na Praça do Arsenal, no Recife Antigo. Em outubro foi ao Peru, participar do 8° Festival Internacional de Bonecos.
Durante muitos anos, Júlio ouviu conselhos do que deveria fazer para ser bem-sucedido. "Faça uma fadinha, faça um reizinho, faça apresentações para aniversários. Eu não quero ganhar dinheiro, eu quero resgatar a cultura. Se eu quisesse ganhar dinheiro eu ia estudar e fazer concurso. Talvez eu não passasse, mas pelo menos eu tinha um sonho. Meu sonho é fazer boneco mesmo. E está realizado".