Herdeiros da violência
Elas correm pelas ruas com a típica alegria infantil. A cena lúdica esconde as mazelas às quais são submetidas dentro e fora de casa. Estão dentro de um ciclo vicioso de violência, que deve transformá-las em futuros agressores. As tintas carregadas da avaliação fazem parte de uma pesquisa realizada pelo Centro de Análises Econômicas e Sociais (CAES) da PUC-RS em três comunidades do Recife: Canal do Arruda, Chão de Estrelas e Santo Amaro. O diagnóstico Infância e violência: cotidiano de crianças pequenas em comunidades do Recife constata que a opressão tornou-se cultural. Pior. Hierárquica, onde o pai bate na mãe, que agride o filho e este reproduz o comportamento agressivo com os menores que ele.
"Existe uma violência cotidiana que subjuga, que faz sofrer de forma silenciosa um contingente não oficial de pessoas indefesas, que são justamente as crianças", atesta o coordenador da pesquisa, o sociólogo e professor Hermilio Santos. Ele vai mais além: "A gente encontrou os pais batendo nas suas companheiras. E as mulheres são as que mais batem nos seus filhos. A gente encontrou também no Recife um nível elevado de crianças batendo em outras crianças nas escolas. Um batendo no outro. Não significa que uns batem nos outros indistintamente. Bate naquele que ele considera, aos seus olhos, hierarquicamente inferior. Isso é difícil. Isso não é polícia que resolve."
O mais triste é que a violência contra a criança não é só permitida nas comunidades, como aceita e ainda tida como uma ação educativa. O problema está aí, mas sequer é detectado pelos pais, sociedade ou autoridades públicas. As crianças estão fora do foco da lista de prioridades. São até vistas, mas sob uma ótica desfocada. Principalmente as de zero a oito anos, faixa etária abordada pela pesquisa. Os agressores estão dentro de casa. São as mães, na sua maioria, pais e avós. O ambiente violento e a falta de condições interferem diretamente no comportamento, mas não são determinantes. Na realidade, a mãe reproduz o comportamento do companheiro e até dos pais, quando foi vítima de agressões na infância.
O ambiente onde se vive interfere nas reações violentas dos adultos contra as crianças. A falta de iluminação nas ruas acoberta os castigos físicos dos pais contra os filhos no Canal do Arruda. Já em Chão de Estrelas, apenas um banheiro na casa, de alguma forma, pesa neste comportamento agressivo. Em Santo Amaro, a violência é um capítulo à parte comparado às outras duas comunidade. Lá, o fato de a família morar numa casa com apenas um cômodo é fator determinante nas agressões.
Fora de casa, a violência tem como principal raiz as drogas e o tráfico. Para se ter uma ideia, no Rio de Janeiro, onde a pesquisa também foi realizada em quatro favelas e é conhecida pelo problema com drogas, 51% dos pais ouvidos já viram ações de tráfico. No Recife, o percentual passa para 82%, nas ruas das comunidades. Também os adolescentes apontam terem presenciado estes crimes. Quanto às crianças, no Rio, 46% foi o índice de testemunhas. No Recife, 36%. Um número elevado, na avaliação de Hermilio dos Santos.
O coordenador da pesquisa foi testemunha ocular da situação das comunidades do Recife. E o que viu, o chocou: "O que me chamou muito a atenção negativamente foram as condições de saúde. Falando sobre o aspecto de vida. As condições de saúde são visivelmente desumanas. Você tem um canal coberto praticamente de lixo. Você tem as ruas cobertas de lixo. E eu vi crianças brincando em meio ao lixo. Então, isso, do ponto de vista humano, não de pesquisador, mas do ponto de vista humano, é terrível, é tenebroso. Como nós, brasileiros, deixamos pessoas viverem nessas condições, crianças vivendo nessas condições. É chocante", testemunhou, com voz pausada e até embargada em alguns momentos.
ESCOLHA - As comunidades do Recife foram escolhidas pela fundação holandesa Bernard van Leer, que financia a pesquisa da CAES. A instituição, que não tem parcerias com a iniciativa privada, investe em projetos sociais, exclusivamente voltados à redução da violência contra a criança de zero a oito anos. No caso do Brasil, eles têm como prioridade crianças que vivem em favelas no Rio, comunidade no Recife, cortiços em São Paulo e comunidades ribeirinhas na Amazônia. O levantamento já foi feito nos dois primeiros e está sendo realizado em São Paulo e Amazônia.
"Dentro dessas cidades escolhidas, eles apontaram essas regiões que, de alguma forma eles tinham conhecimento da situação violenta. São regiões já conhecidas nas suas respectivas cidades como regiões, bairros ou favelas com algum índice de violência ou criminalidade", atestou o coordenador do estudo. Nas três comunidades da capital pernambucana, foram ouvidos 348 pessoas, sendo 256 adultos e 92 crianças de zero a oito anos. A coleta de dados, realizada pelo professor de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, José Luiz Ratton, e pela mestranda em sociologia Patrícia Oliveira, foi realizada entre setembro e dezembro de 2012.
Veja o perfil das comunidades:
Uma força-tarefa. Esta é a receita do coordenador da pesquisa Infância e violência: cotidiano de crianças pequenas em comunidades do Recife, o sociólogo Hermílio do Santos, para tentar reverter o cenário violento em que vivem as crianças nas comunidades do Recife ouvidas pelo trabalho. O grupo seria formado pela sociedade, organizações não governamentais e, obviamente, pelos poderes públicos. "Só a autoridade pública não consegue. Não consegue porque hoje você tem um problema que se tornou complexo. Não é que o problema não tenha solução, seja inviável. Ele tornou-se mais complexo, e só a autoridade pública não dá conta", atesta Santos.
Um dos pontos que chama a atenção da pesquisa é a mulher como o principal protagonista na reprodução da violência. Por conta disso, o estudo sugere ações voltadas para melhores condições para a mulher, aumentando sua escolaridade e sua capacidade de geração de renda. Quanto mais jovem a mãe maior a frequência com que agride os filhos. Seria fundamental que estas jovens tivessem algum tipo de acompanhamento com vistas a reduzir esta possibilidade de praticar violência física contra as crianças pequenas.
Outro ponto destacado com gatilho para a violência é a questão das armas. A pesquisa indica a necessidade urgente do desarmamento de pessoas que controlam as três comunidades, a fim de se garantir uma infância sem as marcas da violência. Para garantir uma possibilidade para o futuro destas crianças, com dignidade e respeito.
Por tratar-se já de uma questão cultural, onde as crianças absorvem e reproduzem o comportamento violento em que vivem exportas dentro e fora de casa, o esforço tem que ser conjunto, focando nos pais e crianças simultaneamente. Para que os primeiros entendam os malefícios do comportamento agressivo na formação dos seus filhos e que eles não se tornem adultos violentos. O estudo aponta a necessidade de atrair um grande número de adolescentes para os programas educacionais, culturais e esportivos extracurriculares, nos quais seja integrado acompanhamento de questões familiares e afetivas dos participantes.
"O que a gente pode perceber que o segredo todo não é um grande volume de recurso. A situação dessas comunidades todas – no Rio, no Recife –, todas elas têm um aspecto em comum. Qual é? Absoluto desinvestimento ou absoluta negligência de todas as autoridades públicas ao longo de décadas sobre o assunto. Isso não é resultante de pobreza. Uma coisa é pobreza e outra coisa é a absoluta negligência, de ocupação do território", discorre Hermílio.
A interferência no problema é mais que urgente. A mestranda de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, Patrícia Oliveira, coordenou a pesquisa de campo nas três comunidades. O que mais chamou a sua atenção foi que as crianças perderam a essência da infância. Foram transformadas em adultos, onde replicam o comportamento de seus pais e vizinhos, expostos à violência cotidiana. "Não há espaço para brincar. As brincadeiras foram esquecidas por elas. Há muita erotização nas meninas e isso assusta quando você flagra esta realidade", narra Patrícia.
Tanto é que, para 63% das crianças de Chão de Estrelas faltam áreas para o lazer, como praças, parques e parquinhos com balanço. A reclamação também é feita por 60% das crianças do Canal do Arruda e 40% em Santo Amaro.
Dentro do raciocínio infantil, elas apontam a ausência de brinquedos e espaço para brincadeiras como maiores problemas. Sabem que a violência é uma companhia constante, mas apenas 5% dos ouvidos no Canal do Arruda pedem menos violência, tiro e drogas. Lá, a preocupação com o lixo é maior, com 20% das reclamações. Em Santo Amaro, o apelo à paz é de 13% dos entrevistados. Tal preocupação sequer é mencionada pelas crianças de Chão de Estrelas. Não que os atos violentos sejam menores, mas a percepção dos menores não coloca o tema como prioridade.
Diretora de redação: Vera Ogando
Edição: Lydia Barros | Reportagem: Leianne Correia
Fotografias: Teresa Maia
Edição de Multimídia: Jaíne Cintra
Edição de vídeo: Eduardo Travassos | Design e Desenvolvimento: Jota Bosco
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