Canal do Arruda

O toque animado das alfaias, tambores e ganzás improvisados dita o ritmo da alegria das crianças e adolescentes da comunidade do Canal do Arruda, reunidas na mal cuidada praça do local. Nem o mau cheiro do canal abafa a animação dos moradores. Encerrado mais um ensaio orquestrado pelo grupo Pé no Chão, uma organização não governamental que comanda ações sociais junto aos jovens do Arruda, o clima de descontração se quebra. Um rompante intempestivo de uma jovem de 15 anos interrompe a harmonia. Ela atravessa a praça com passos firmes, decididos e parte para cima de um garoto que estava tranquilamente em cima de uma bicicleta, estacionada no meio fio da praça. Derruba e desfere uma sequência de tapas. O menino, de 12 anos, nem reage tamanho o susto. Ela sai esbravejando.

Perfil

São 146 domicílios, com uma população de 495 pessoas, sendo que 83 delas são crianças de até oito anos de idade (16,7%)

A média de moradores por domicílio é de 3,39

37% das famílias possuem renda per capita de até metade de um salário mínimo (R$ 311 ou cerca de US$ 150)

30% obtêm renda per capita de até um salário mínimo (R$ 622 ou cerca de US$ 300)

18% das famílias da comunidade recebam dois ou mais salários mínimos per capita

O motivo da violência é que o garoto de 12 teria batido no irmão pequeno – de uns 8 anos – da adolescente na pelada que acontecia durante o ensaio. A cena quebra o clima de harmonia, mas não causa alvoroço no grupo. Incidentes deste tipo são lugar comum na comunidade, já que este tipo de violência é uma constante. Na verdade, é hierárquica. O maior ou mais forte bate no menor, mais fraco. A jovem é fruto de um lar desfeito, onde a mãe, abandonada pelo pai da filha, casou-se novamente e é frequente vítima de violência do atual companheiro. Apanha e revida nos filhos, que repetem o aprendizado nos vizinhos, colegas de escola, num triste e violento ciclo vicioso.

Esta realidade é constatada na pesquisa Infância e violência: cotidiano de crianças pequenas em comunidades do Recife, realizada pelo Centro de Análises Econômicas e Sociais, da Universidade Católica do Rio Grande do Sul. A coleta de dados aconteceu em três comunidades do Recife: Canal do Arruda, Chão de Estrelas e Santo Amaro, sob a coordenação do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. De tão acostumados aos maus tratos da vida, a violência já faz parte da cultura dos moradores, principalmente quando o assunto é a educação de crianças. Gritar, castigar, bater são ações tidas como educativas.

"Tive 10 filhos. Oito estão vivos. Nenhum deu para o errado. Não me arrependo de nenhum tapa ou grito que dei", orgulha-se Sônia Maria Alves de Lima, 50 anos. Hoje, a faxineira – arrimo de família e chefe da casa – divide a casa de três cômodos com cinco filhos e dois netos. O caçula, I.A.S., de 9 anos, é alvo dos castigos, gritos e tapas. "É um menino muito danado. Quer sair toda hora, sem avisar onde vai ou com quem está. Aqui tem que escolher as companhias com cuidado, senão se junta com quem não presta e aí já viu", explica.

I.A.S. confirma as confissões da mãe, ao relatar que ela lhe aplica uns corretivos quando sai sem avisar. Diz já estar acostumado e não tira ela da razão. "Aqui é muito perigoso", atesta. Na escola, também é vítima da violência dos garotos mais velhos. "A gente reclama com a professora, mas sempre apanho. Dá vontade de não ir mais", sentencia. Só não deixa de frequentar as aulas porque gosta muito de jogar futebol na hora do recreio. Um privilégio que não tem na comunidade por falta de espaço.

As crianças improvisam nas calçadas de terra batida espaço para o jogo de bola de gude. Fazem das margens do canal local de brincadeira. Andar de bicicleta é uma aventura que pode custar caro, por conta dos atropelamentos, que são bem comuns na comunidade. A falta de área para lazer é uma constante reclamação dos moradores. Não é raro ver traves improvisadas nos becos e vielas do Canal do Arruda. As crianças dividem espaço com os traficantes que se aproveitam dos locais estreitos para vender e consumir drogas.

Para que os dois filhos convivam o mínimo possível com os perigos que rondam a comunidade, Ana Carla da Silva Feitosa, 38 anos, convoca os amigos dos filhos para brincarem na sua casa. O local também serve de oficina onde ela e o marido consertam estofamento de cadeiras, sofás, além de trabalhos em marcenaria. A casa fica abarrotada de crianças e ela assume o papel de mãezona. Briga, cobra dos filhos dos outros bom comportamento na sua casa. Com suas criar, o rigor é maior e sempre usa o castigo como principal punição, mas não se furta de um bom tapa, com diz, para mostrar o caminho certo a seguir. "É para o nosso bem", conforma-se G.S.F., de 8 anos.

VINCULADA - O conformismo das crianças em aceitarem as punições físicas dos pais e cuidadores é um sentimento dividido com a comunidade. A pesquisa mostra que a população cala-se frente à violência praticada contra crianças, já que a maioria das famílias comete castigos físicos e há uma cumplicidade para não denunciar uns aos outros. Entre as medidas pedagógicas impostas aos pequenos, gritar lidera a preferência, seguido de bater e colocar de castigo.

Conforme o levantamento, as maiores agressoras são as mães, depois avós e pais. São elas quem assumem a criação dos filhos, quando são, na grande maioria das vezes, abandonados pelos companheiros. I.A.S., filho de Sônia Alves de Lima, nunca conheceu o pai. Só alguns dos companheiros que a mãe teve ao ficar solteira. "Fui pai e mãe de todos eles", garante Sônia. A realidade de I.A.S é partilhada pelo vizinho de beco, J.V.S., 13 anos. Ele mora na casa da avó, porque a mãe saiu de casa ele ainda bebê, quando foi atrás do companheiro que a abandonou grávida e nunca mais voltou.

"Minha avó é quem cuida de mim", afirma J.V.S. Ela também é quem aplica os castigos quando ele não quer ir à escola. "Gosto mais de tocar (surdo) do que estudar. Minha vó fica brava quando falto aula para ficar pelos becos, brincando. Eu sei que está errado, mas uma lapadinha a mais não dói tanto assim", constata. Outra desobediência é ir para a beira do canal – local onde as crianças brincam de pega-pega, gangorra, desafiando o olfato diante do mau cheiro e a saúde, por causa da sujeira.

O fato de J.V.S. morar numa rua com pouca iluminação interfere na frequência com que apanha. A pesquisa constata que crianças que moram em casa com pouca iluminação são mais vulneráveis aos castigos físicos. A penumbra vira aliada da violência. A falta de estrutura afeta a paz entre pais e filhos. Quanto menor o número de cômodos e até a existência de banheiros nas casas, maior a violência imposta às crianças, alvos fáceis da falta de paciência de seus cuidadores. Tanto é que as mães que trabalham fora são as maiores agressoras, como é comprovado por G.S., 8 anos: "Minha mãe faz faxina e quando ela chega muito cansada é melhor nem atentar o juízo dela, porque se não é lapada na certa." E diz isso com a maturidade que o instinto de sobrevivência lhe obrigou a ter em tão pouco tempo de vida.