Chão de Estrelas

C.B.S., 11 anos, e E.J.O., 10 anos, são amigas. Frequentam a mesma escola, dividem a sala de aula e, à tarde, participam das atividades do grupo Daruê Malungo, uma organização não governamental que faz trabalhos sociais em Chão de Estrelas. Juntas, sabem na ponta da língua as regras do manual de sobrevivência para o local onde moram. Não pode sair à noite, nem ficar pelas ruas e, se ouvir tiros, deve entrar correndo em casa ou qualquer lugar em busca de abrigo. Caso infrinjam alguma regra, são castigadas.

Perfil

São 248 domicílios, com uma população de 866 pessoas, sendo que 116 delas são crianças de até oito anos de idade (20,88%)

A média de moradores por domicílio é de 3,25

43% das famílias possuem renda per capita de até metade de um salário mínimo (R$ 311 ou cerca de US$ 150)

37% obtêm renda per capita de até um salário mínimo (R$ 622 ou cerca de US$ 300)

6% das famílias da comunidade recebam dois ou mais salários mínimos per capita

"Eu fico sem ver televisão. Mas são poucas as vezes. Minha mãe, quando perde a paciência comigo, me dá grito. Levo pouco tapa", analisa E.J.O. Já C.B.S. garante não desobedecer as ordens – ou pelo menos não é flagrada pela mãe. Carrega no histórico familiar a perda do irmão mais velho. Morreu trocado por outro, como ela explica. O engano levou do convívio de C.B.S. e do irmão do meio um jovem de 16 anos. "Ele era direito. Quando entraram no bar atirando, pegou nele. Fiquei muito triste. Minha mãe sempre chora quando fala dele." O episódio aconteceu há dois anos, segundo C.B.S.

O fato de C.B.S. e E.J.O. serem meninas justifica o fato delas pouco ou não apanharem das mães. A pesquisa Infância e violência: cotidiano de crianças pequenas em comunidades do Recife, realizada pelo Centro de Análises Econômicas e Sociais, da Universidade Católica do Rio Grande do Sul, atesta que as mães em Chão de Estrelas batem mais em meninos. Os dados foram coletados em três comunidades do Recife: Canal do Arruda, Chão de Estrelas e Santo Amaro, sob a coordenação do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. O fato de serem também as únicas crianças em casa favorece a situação delas quanto aos castigos físicos. O levantamento apontou que quanto mais crianças, maior o índice de violência física.

Apesar dos cuidados maternos, as meninas já testemunharam vários episódios violentos. "De vez em quando eu escuto tiros no beco perto de casa. Aí eu corro para debaixo da cama e espero acabar", narra E.J.O.. C.B.S. explica que depois dos tiros sempre fica alguém caído no chão. "Aí vem o carro do IML (Instituto de Medicina Legal) para socorrer, mas eles sempre morrem", explica inocentemente E.J.O.. Depois que levam os corpos, pergunto se tem alguém que limpe as manchas de sangue. "Não. Fica lá tudo sujo até que a terra da poeira cobre", comenta CB.S.

Já V.O., 9 anos, apesar das ordens de não sair que a mãe lhe dá, é mais andarilho das ruas que as meninas. A danação custa caro e a conta é paga com tapas, gritos e castigos que a mãe aplica. "Sou danado mesmo. Não paro quieto", assume. A hora que se acalma é quando joga futebol com os meninos do Daurê Malungo. Alimenta o sonho de ser jogador de futebol e um dia ser como Cristiano Ronaldo – craque português, eleito o melhor do mundo no ano passado.

Quer dar boa vida à mãe e à família. Deseja morar numa casa com mais espaço para abrigar todos que dividem o mesmo teto atualmente. São cinco cômodos para acomodar ele, a mãe, o irmão e mais sete pessoas. Está entre a maioria dos moradores da comunidade que tem como endereço um ambiente com cinco cômodos. Também em Chão de Estrelas, quanto mais crianças, maiores são as chances dos castigos físicos.

Apesar os espaços compactos das casas que moram, a hipótese de brincar na rua é considerada uma péssima opção para a maioria dos moradores. As crianças ficam mais vulneráveis, principalmente por conta das rixas com a comunidade vizinha de Saramandaia, a eterna rival.

"Tem meninos daqui que vão para Saramandaia para acertar contas por causa de drogas e aí já viu. Tiroteio certo. Quando morre um lá, eles vêm aqui para matar um", explica V.O., que já teve vizinho exterminado pelos rivais. As brigas entre as comunidades rendem muitas interferências da polícia. Tanto é que as crianças ouvidas pela pesquisa confirmam que já viram gente sendo levada pela polícia. Também já presenciaram – em menor escala – adultos, não policiais, portando armas de fogo. Cenas que deveriam ser proibidas para menores. Mas infelizmente fazem parte do cotidiando destas crianças.

VINCULADA - Março é um mês difícil para Ivaneide Cruz Barbosa Pereira, 29 anos, e sua família. Há 10 anos perdeu o irmão mais velho, vítima de bala perdida. Há cinco, o primo, que era como se fosse o irmão. Foi executado por traficantes com os quais se envolveu. Exatamente um dias antes de completar 16 anos e no dia em que o filho fez dois anos. Apesar do passar dos anos, a dor não permite que ela entregue o presente ao sobrinho no dia do aniversário. As festas da criança são feitas em abril, junto com a do irmão caçula, que sequer chegou a conhecer o pai.

O que mais entristece Ivaneide é a impotência diante da dominação dos tráfico de drogas junto aos jovens. O primo/irmão tinha apoio da família, participava das ações sociais do Centro Comunitário de Chão de Estrelas e tinha um talento nato para o futebol, a ponto de despertar o interesse de um olheiro para ingressar na categoria de base do Sport. "Ele tinha trabalho, apoio da família, mas não resistiu à tentação do dinheiro fácil. A gente se esforça tanto, aconselha tanto, mostra tantos exemplos para quê? Para receber a notícia que foi morto? Dá um desânimo", lamenta ela.

A dificuldade maior de aceitar o ingresso do primo no mundo das drogas é o fato dela ter frequentado o Centro Comunitário, se formado em pedagogia e trabalhar lá, local que chama de segundo lar. Hoje, é voluntária do centro e tenta ajudar as crianças a não terem o mesmo fim do primo. Uma luta muitas vezes inglória, porque as derrotas, apesar dos esforços, são maiores que gostariam de contabilizar. Tanto é que o tráfico de drogas é um dos principais problemas apontados por adultos e crianças da comunidade.

As crianças ouvidas pela pesquisa vivem sob o domínio do medo, alegando não se sentirem seguros em muitos lugares da comunidade. Num dos relatos da pesquisa, um morador lembra que estava no bar quando um jovem, de 16 anos chegou, pediu um guaraná e anunciou que seria o último de sua vida. Poucas horas depois, a mãe dele chegou anunciando sua morte. Disse que foi chamado para morrer. Diante dos relatos dá para entender porque as ruas de Chão de Estrelas, na sua maioria largas e calçadas, têm poucas pessoas circulando por elas.