Santo Amaro

Catorze é a diferença de idade entre Josefa Maria Lima do Nascimento, 59 anos, e Ariovaldo Alves, 45. São vizinhos da comunidade de Santo Amaro e, apesar dos poucos metros que separam suas moradias, têm posições completamente contrárias em relação ao local onde habitam. O desejo de Josefa, se tivesse "poderes mágicos", era mudar de endereço. Sair de Santo Amaro, local onde mora há pouco mais de três décadas. Já Ari, como é conhecido entre os moradores, acredita tanto que é possível transformar a difícil realidade do ambiente que vive que resolveu constituir família lá. Tem mais: os dois filhos – uma de 12 e outro de 7 – são frequentadores da Associação de Apoio às Crianças e Adolescentes (AACA), apesar de estudarem em escola particular.

Perfil

São 509 domicílios, com uma população de 1.646 pessoas, sendo que 251 delas são crianças de até oito anos de idade (15,2%)

A média de moradores por domicílio é de 3,23

52% das famílias possuem renda per capita de até metade de um salário mínimo (R$ 311 ou cerca de US$ 150)

26% obtêm renda per capita de até um salário mínimo (R$ 622 ou cerca de US$ 300)

15% das famílias da comunidade recebam dois ou mais salários mínimos per capita

"Acredito que os valores que passo aos meus filhos é mais forte que as tentações que rondam os jovens daqui", prega Ari. Do outro lado, Josefa assegura que se pudesse sairia de Santo Amaro. "Tenho asma e vivo sendo socorrida por causa da fumaça de maconha. Criei meus três filhos aqui na comunidade. Era mais fácil do que hoje. Ajudo na criação dos netos e vejo como está mais complicado manter as crianças seguras", atesta a dona de casa.

A vulnerabilidade da criança de Santo Amaro está tanto fora quanto dentro de casa, conforme atestou a pesquisa Infância e violência: cotidiano de crianças pequenas em comunidades do Recife, realizada pelo Centro de Análises Econômicas e Sociais, da Universidade Católica do Rio Grande do Sul. "Criança faz o que aprende", resume Cíntia Oliveira Mendonça, 27 anos, que foi criança em Santo Amaro e hoje é mãe de quatro. Por isso, a pesquisa aponta que pais que batem são os que também apanharam na infância. É a reprodução do comportamento, como um ciclo vicioso.

Fora de casa, o perigo mais constante são as drogas. Pior: a sedução de menores para engrossarem as fronteiras do tráfico, com o chamariz o fato da punição prevista na legislação brasileira para menores de idade ser branda. O recrutamento é intenso e, muitas vezes, com saldo positivo. "O maior problema aqui é a violência por causa das drogas", enumera G.L.S.A., 11 anos. E como acaba com a violência, pergunto. "Com a paz", responde com simplicidade. Ele mora com a avó, tia e primos, num total de cinco pessoas na casa. Planeja ser biólogo para aprender mais sobre a vida e garante ser caseiro. "Só fico mais na AACA e nas lan houses. A rua é perigosa. Só vou quando jogo bola com os amigos."

O temor das ruas faz com que Cíntia Oliveira seja bem seletiva sobre os locais que as filhas frequentam. Tem a sorte de morar em frente ao trabalho. É auxiliar geral na Associação de Apoio às Crianças e Adolescentes, onde as três filhas frequentam. Só a caçula, de 8 meses, ainda não tem idade de frequentar a creche. A mais velha, de 12, e a segunda, de 10, vão para uma escolinha no fim da rua. A terceira, de 2 anos, só está na creche da AACA.

Ela foi aluna da associação. Saiu de Santo Amaro, quando casou e foi mãe aos 16 anos – repetindo a história da mãe, que a teve na mesma idade. Voltou depois da separação. Economiza cada centavo para comprar a sua própria casa. Enquanto isso, divide um quarto com as quatro filhas, numa casa que não tem sequer sala. Apenas uma entrada, quatro quartos, um corredor, cozinha e banheiro. Lá, moram ela, a mãe, pai, um irmão, uma irmã de criação e as quatro filhas. Perguntada onde seria o novo endereço, ela não tem certeza se quer que seja em Santo Amaro. "Apesar de ter me criado nestas ruas, quero o melhor para as minha filhas. Não sei se é aqui", justifica, num tom entristecido, como se estivesse cometendo uma traição às suas raízes.

Compreensível, já que a violência é tão constante na comunidade – apesar de muitos concordarem que já foi pior – que as agressões que os pais, principalmente mães, cometem contra as crianças são feitas às claras. Conforme a pesquisa, a violência contra as crianças acontece não só à luz do dia, como em locais com iluminação. Pior é que o comportamento, quando as medidas são adotadas por pais ou responsáveis são aceitadas e até bem-vindas, como forma educativa. Gritos, tapas, xingamentos são tidos como zelo com os menores, como se isso fosse ajudar a abafar um cenário violento que os sufoca.

VINCULADA - Que o futebol é uma paixão nacional, todos sabem. Para os meninos, então, o assunto lidera a ordem de preferência, principalmente nas brincadeiras. Não poderia ser diferente para G.L.S.A., 11 anos, L.W.N.F., 13 anos, R.V.F.P., 15 anos, um trio de rubro-negros que mora em Santo Amaro e frequenta a Associação de Apoio às Crianças e Adolescentes (A.A.C.A.), no período da tarde. Mesmo a A.A.C.A. sendo praticamente vizinha do campinho de futebol, o chamado Campo do Onze, eles não botam o pé lá. O local é palco de guerra entre as gangues que disputam o tráfico de drogas da comunidade.

"Lá só tem menino maior que a gente e que se aproveita disso para bater, só por maldade. Sem motivo nenhum, batem nos menores que passam por lá. Por isso, ando pouco pelas ruas. Prefiro ficar perto de casa. No máximo vou para uma lan house", narra R.V.F.P., que conta que a principal diversão na internet é ficar no Facebook.
"A gente paquera as meninas, joga, conhece gente nova", enumera L.W.N.F., que mora com uma tia e a avó. Ele explica que na internet é onde se sente mais seguro. Da mãe, não tem notícias. Foge do estereótipo de ser mimado por ser criado por vó. A mãe da mãe é linha dura, segundo ele, e não pensa duas vezes em "descer a mão" quando perde a paciência. Por isso, L.W.N.F. faz de tudo para não apanhar dela. "Ela já passou por muita coisa e ainda tem que cuidar de mim", justifica, mas admitindo que paciência não é muito o forte da avó. Criou todos os filhos aplicando corretivo, do mesmo jeito que foi educada.

"Na minha escola, os meninos maiores são os donos da sala. Eu mesmo fico na minha para não levar lapada. Quanto menos eu apareço, melhor. Se ninguém me nota, já é vantagem", revela G.L.S.A. a estratégia de se livrar dos corretivos que os colegas de escola aplicam nos mais fracos. Como se a invisibilidade fosse a melhor solução, já que, segundo a pesquisa, um dos pontos que mais desespera os moradores é a falta de perspectiva de melhoras. São tragados pela violência e acabam convivendo, quando não participam indiretamente dela.

Um dos meninos, ouvidos pela pesquisa, revelou que ajudou a desovar o corpo de um amigo. Ele contou que a vítima foi morta em casa e que ele ajudou a carregar o corpo, depois disso expulsaram a mãe do amigo da casa. Disse que ajudou a carregar o corpo para colocar na pista de automóveis, para que carros passassem por cima de sua cabeça. Relatou de forma natural, como se ajudasse alguém a carregar compras ou qualquer objeto mais pesado. Sem opção para reagir.