Cinco irmãos e um destino
Impotência é a destruição do homem. É a sensação inconveniente de ter consciência da desgraça a martelar-lhe o rosto sem a capacidade de fazer coisa alguma para impedi-la. Tudo diante de seus olhos. Por isso, toda doença que não se entende - muito menos se cura - recai sobre famílias como maldição, cuja única esperança é a intervenção divina. Em Verdejante, não é diferente. Uma síndrome rara, de nome difícil - Hallervorden-Spatz -, que, segundo o Centro de Genomas, atinge no máximo três pessoas a cada milhão, encontrou na cidade espaço para desafiar probabilidades. Dos estimados 20 pernambucanos com a mutação genética incapacitante, cinco estão aqui. Todos na mesma casa, à beira da Rua Antônio Pedro da Silva, principal via de acesso ao Centro, onde vivem os irmãos da família Pereira Bringel.
Joaquim, 41, teve que interromper as corridas na rua aos 14 anos. Começara a andar "estranho". Quando as pernas já estavam completamente tortas, viu o irmão Luiz, 37, desenvolver os mesmos sintomas. Fábio, 35, apresentou os primeiros traços quando o irmão mais velho já não erguia copos e carregava no rosto os sinais da distorção. Resistente, Fábia, 33, demorou mais para trilhar o caminho. Vaidosa, revoltava-se ao pensar ser aquele seu destino, em que precisaria de ajuda até para beber água. Trancava-se no quarto ouvindo as músicas de Zezé Di Camargo e Luciano. Se ficasse como os irmãos, que ninguém a visse! Com o tempo, o corpo venceu sua vontade e sentou-a no mesmo tipo de cadeira de rodas que a família compartilha. Chora com facilidade. Só se acalma diante do grande pôster no quarto. "Porque ele (Zezé) é bonito", responde, cortando palavras quase paridas, sobre o motivo da paixão. E Luciano? "Não que nem Zé", diz, entregando-se ao mais próximo que consegue de um sorriso.
A caçula Fabrícia, 25, anda com paciência pela casa. Vez por outra se distrai e se pega andando na ponta dos pés. O desespero a invade por segundos. Senta a "barriga" do pé no chão e segue, deixando a preocupação de lado. Foi assim que os irmãos "começaram". Cresceu vendo a luta dos pais contra um terror silencioso que tirou dos filhos até os dentes. Recém-casada, vive como pode. "E como Deus permite. Meu marido disse que ficaria ao meu lado de um jeito ou de outro. Posso fazer nada, senão esperar. Vou enlouquecer?", justifica, antes de limpar os lábios molhados de um irmão e ajeitar outro na surrada cadeira, quase a virar.
A rara síndrome é maldita até na origem. Foi descoberta nos anos 20, pelos alemães Hallervorden e Spatz, suspeitos de serem íntimos do nazismo. Até hoje, não há cura ou remédio eficiente. Restam paliativos que amenizem os efeitos da mutação do gene PANK2. Um detalhe. Minúsculo. Com efeito devastador. Com ela, o corpo vai depositando altas doses de ferro nos gânglios da base do cérebro, lentamente comprometendo movimentos do corpo, fala e capacidade cognitiva. Normalmente, os sintomas se desenvolvem antes dos 10 anos, o que permitiria diagnóstico e tratamento desde a infância. Para eles, não houve essa chance. "Seria possível retardar sequelas e fiscalizar a dieta, mais livre de ferro. Isso diminuiria a chance de doenças secundárias, que nesses casos acabam levando à morte, como pneumonias por aspiração de comidas ou líquidos", explica o neurologista do Hospital Oswaldo Cruz, que acompanha a família, Carlos Frederico Lima.
Na cadeira de balanço, Antônio Pereira da Silva, 90, deixa a lágrima escorrer pelo rosto castigado. "Você não cria filho para isso", reclama. Sabe o que diz. Antes do quinteto, teve outros quatro meninos com a esposa - e prima. Trabalhar, ainda nessa idade, permite clarear as ideias longe de casa e conseguir um pouco mais de dinheiro, mais que necessário para tentar simular um mínimo de normalidade. Seu Antônio está ali, em cada rampa de cimento entre os cômodos; em cada adaptação do entorno da casa para que eles não escorreguem das cadeiras; em cada viagem ao Recife na busca por uma cura que não chega...
À Raimunda Alves Bringel, 67, resta o "desdobrar-se" de mãe. O cuidar das feridas no rosto dos filhos após os frequentes tombos das cadeiras, que mal aguentam seus pesos; o alimentar quatro pessoas antes de se permitir ter fome; o acender de velas para Nossa Senhora. Não pede muito. Apenas que Deus olhe para Verdejante e cadeiras de rodas que permitissem os filhos voltar a sentir na pele o vento da rua em que cresceram. "Com eles, tenho alegria de ser mãe todo dia. São iguais. Não tem diferença dos meus outros filhos", garante. Mas tem. Pros demais, Raimunda não procura um canal onde apareça Ronaldo Fenômeno apenas para ver a reação animada de seus "meninos"; não os envolve em bandeiras do Flamengo e canta com eles o hino; não busca CDs de duplas sertanejas para transformar lágrimas de solidão em prazer. Raimunda, prima de Antônio e mãe de nove, rejeita a sensação de impotência. Pelos seus, faz de tudo, o que, no fim das contas, é exatamente o que se pode fazer numa cidade longe de tudo.