O menino dos 70 crimes
De cima da ladeira, o grito ecoa pela rua: "Volte aqui para morrer, ladrãozinho!". A ameaça é recorrente. Quase não faz efeito. Muitos juraram matar aquele que tem entre as vítimas beatas, comerciantes e até juiz. Raimundo* é um dos cidadãos invisíveis da cidade. Aos nove anos, trocou fruteiras pela escalada de muros, entrando sorrateiramente nas brechas de telhados e janelas, apressando o "adeus" de quem tem apego a celulares e outros objetos de valor. No mundo de Raimundo, tudo lhe é de direito. No fim das contas, o mundo real não conseguiu forma eficaz de contrapor sua verdade.
Sua ousadia não passa de 1m30 de altura, num corpo moreno e magricelo. As mãos pequenas, de aperto quase delicado. Os grandes olhos negros são ao mesmo tempo desafiadores e suplicantes. Ouve tudo sem parecer se importar. Como se a persona descrita em exclamações não fizesse parte de seu ser; calmo, quase tímido. "Ele não escuta ninguém. Já o prendi num quarto e ele subiu pelas paredes. Oito metros de altura! Estamos velhos. Fomos no Fórum avisar que, da próxima vez, deixamos ele lá. Senão, vamos morrer por conta dele", lamenta o avô materno.
Os roubos começaram em 2009, após ver a mãe conduzida ao Presídio Feminino de Buíque, a 273 km dele. É comum ouvir que teria sido ela sua "professora". Dos furtos, não se sabe destino. Não porta dinheiro, compra coisa alguma ou usa algo além de bermuda e chinelos. Perguntado, olha nos olhos e dispersa, como não havendo resposta cabida.
Encontrar Raimundo é um desafio. No horário em que estaria cursando o terceiro ano fundamental, é visto num dos videogames de fichas do bairro. "Não gosto de escola", resume. Pudera! Não foram poucos os episódios em que acabou suspenso por reagir violentamente quando colegas o apontavam dedos e gritavam "ladrão". O local em que nova história poderia ser escrita só reproduz a realidade da qual ele claramente não nutre orgulho. Como vingança, o menino investe contra as casas deles, reforçando a aversão da qual tenta, ao próprio modo, livrar-se.
"Difícil achar rua sem nenhuma casa que ele tenha roubado. Ele tem 'mão de seda'". A frase é dita por uma conselheira tutelar. Elineide César da Silva acompanhou o menino por dois anos. Contabilizava 70 furtos, ainda que, sem muitas formalizações de queixas, quase não houvesse registros na delegacia local. "As pessoas não eram de criar cachorros. Hoje, muitas casas têm cães por conta dele. Às vezes, outros furtam e põem a culpa nele. Vamos ficando sem saber o que fazer", afirma.
E não é um caso banal. Até completar 12 anos, o garoto era acobertado pela lei: não respondia criminalmente pelos atos, nem com medidas de reeducação, uma vez o município não possuindo casas de reabilitação ou acolhida. O Ministério Público interveio, tentando oferecer proteção no seio familiar, mas não restou parente disposto a criá-lo. Numa casa de acolhida de Salgueiro, foi expulso em um dia. Numa especializada, em Caruaru, furtou a bolsa da psicóloga e foi devolvido. Em Serra Talhada, foi rejeitado já na avaliação. E foi ficando à mercê da sorte.
O tempo passou e antes dos 12 anos (recém-completados) foi encaminhado a uma associação de recuperação de jovens dependentes químicos, na cidade do Crato, no Ceará, onde se encontra. Por enquanto. De lá, já fugiu mais de uma vez. "As pessoas não o enxergam como vítima. Pelo contrário, reforçam estigmas, o apontam na rua... Como ele mudaria?", reforça o assistente Luciano Damasceno.
Enquanto é fotografado, Raimundo pula de um sofá a outro e se agarra a toda quina de parede. Tem força nas pernas e nos finos braços. Questionado se sabe ser errado o que faz, balança a cabeça afirmativamente. Segue-se um silêncio nas demais questões. Volta a falar apenas quando lhe é feita a pergunta que parece decisiva: "Sabe o que vai acontecer se continuar roubando?". Mais um balanço de cabeça. Insisto, todo sobrancelhas. "Vão me levar para onde levaram minha mãe".