O homem nu
Aos 11 anos, João da Luz* tirou as roupas e nunca mais colocou. E já se vão quase 50 anos de nudez. Não há quem nunca tenha ouvido falar dele pelas ruas de Verdejante, mas a verdade é que poucos o viram. Recluso num sítio da família e adepto dos passeios pelo mato em direção a açudes, pouco a pouco o homem nu vai virando lenda e já tem quem diga que ele nem existe. "Existe. Uma vez estava pescando quando ele apareceu a uns 20 metros de mim. Quase me desmonto de medo", conta um dos moradores, no caminho da residência da figura quase cultural. Outro avisa: "Mas não invente de ir atrás dele. Se ele não conhece quem é, mete logo bala".
São as roupas que rejeitam João da Luz. Elas se recusam a dar-lhe liberdade necessária nos movimentos e agasalham além da conta, numa terra onde o calor não se vai junto com o sol. Por saber que seu mundo não é o mesmo que os demais, mantém-se na terra em seu domínio, embrenhando-se em meio à caatinga que lhe é habitual, mas passa longe de se esconder. Na verdade, poupa sua nudez de ser vista por uma cultura que rejeita sua naturalidade. E assim vai vivendo, sem fazer mal algum, além de disparar balas de sal em quem se aventura por suas terras.
Na cintura, uma espécie de cinto de corda, com sobra nas duas pontas, pendendo de um lado. Desamarra o nó antes de todos os banhos e o retira, junto à faca peixeira que carrega presa ao acessório e ao corpo. Depois o recoloca, como se aquela fosse toda a vestimenta que se fizesse necessária. Os cabelos não têm um encontro com tesouras há tempos. Volumosos, realçam a aura de temor que todo desconhecido imprime na vã ignorância humana. Quase não fala.
Familiares e moradores mais velhos têm lembranças de sua última aparição em um grande público, quando roupas já não faziam parte dele. Foi no velório de sua mãe, quando arriscou despedir-se. Compreendeu o choque que causaria. Envolveu-se numa toalha, se fez presente num rompante. Aproximou-se do caixão, sob o olhar atento de uma plateia, naturalmente curiosa, olhou para o rosto dela e partiu em retirada. Pela maior parte dos habitantes, nunca mais foi visto. "Ele fica a maior parte do tempo em casa. Nunca usa roupa, mesmo quando recebe visitas", conta uma prima. E ele sempre convida um ou outro amigo da família para uma tarde de mesa farta de bebidas e comidas, em que aparecem aqueles que não o veem como constrangimento.
João da Luz é um fruto da própria escolha. Abriu mão do convívio com o restante do mundo na busca universal pelo sentir-se bem. Quis livrar-se das convenções, abraçando uma felicidade que, sabe, nem todos entendem, muito menos apoiam. É visto com olhos de julgamento por isso. Virou lenda por isso. E, justamente por isso, vira as costas para a opinião alheia, como o faz toda minoria. Em Verdejante e no "mundo" fora dela.
*nome fictício