Todas as penhas em uma Maria
Quando alguém é preso, a família acaba presa junto, ainda que longe do odor de grades enferrujadas. Quando José Henrique*, 45, foi preso pela quarta vez por roubo, Maria* imaginou para si, uma vida melhor. E poucas histórias seriam menos felizes que 18 anos de agressões dentro de casa. Estava enganada. Mãe solteira, seis filhos e escolaridade quase nenhuma. Ir embora não era opção. Especialmente com "colegas" do marido, recluso em um presídio de Salgueiro, aparecendo para checar se "está tudo bem" e se no local há outro homem. As visitas às quintas-feiras são lembretes do calvário que, um dia, sem saber, escolheu pôr sobre os ombros: "Se fugir, vou atrás até no inferno. Se não encontrar, mato seus irmãos. Se trair, mato você e ele", é lembrada. Não ousa desobedecer. O medo congela o sangue. "Eu já disse para minha mãe ir embora. Se ele vier, mato com minhas mãos", garante Júnior, 21*, filho mais velho. O mesmo cuja gravidez foi apressada por um golpe de faca na barriga da mãe, desferido pelo mesmo homem a quem ela, até hoje, jura fidelidade.
Se nem sempre há lógica no amor, deveria haver, ao menos, limite de tolerância. O sentimento deixou Maria na mão há anos. Resta seguir marcando na cartilha a "pontuação de Amélia": comparecendo, sem atrasos, ao encontro conjugal; atendendo, antes do segundo toque, a ligação celular ilegal do marido; alimentando os filhos e tentanto convencer-lhes que o pai não é monstro, contrariando sua memória.
Para fugir da morte, Maria deixou de viver. Passa o dia vendendo quitutes e o artesanato feito pelo marido no cotidiano da reeducação. À noite, fica acordada enquanto Júlia*, 14, anda pelas ruas da cidade sem dar retorno. "Ela se junta com amigas que não são boa influência. Fico sem saber o que fazer", conta. Vez por outra, a filha chega em casa com dinheiro ou celular novo. Como conseguiu, não diz, mas a mãe sabe bem das histórias das garotas da academia da cidade e do entorno do Presídio Feminino, onde recebem visitas mal-intencionadas de vizinhos casados ou trabalhadores da Transnordestina.
Aterroriza-se ao cogitar outro aborto da filha, como o de um ano antes. Não consegue impedir a desgraça de se instaurar na história da menina e garante que a preocupação passa longe de ser tão vendida quanto a inocência dela. "Ela disse que parou. Não acredito. Fico na dor de cabeça".
A adolescente de pouco mais de 1m60 e seios fartos não é de muitas palavras. Conta não ser envolvida "nesses negócios errados". Nega ter consumido bebida ou outro tipo de droga, ainda que encabulada pela risadaria irônica da mãe e irmã. O celular, diz que foi presente, mas não de quem. Diz tentar mudar, mas não em quê. Na dúvida, repete um "sei lá" após outro.
Na história de mãe e filha, não intervenções do poder público. E não é por falta de aviso. A língua do povo dá conta da realidade de famílias como as de Maria. E "Marias e Júlias" há aos montes na cidade. Todos com uma alcunha, uma mácula - no nome e no rosto -. Só de agressões sofridas, há uma penca de registros na delegacia. Nunca foram para frente. E se denúncia de agressão dá em nada, o que dizer de ameaças? As Marias vão sobrevivendo. Invisíveis perante a proteção da lei que, se enxerga, não ousa atingir os intocados abusadores de mães e filhas.
Semanas depois de deixar Verdejante, recebo uma ligação perturbadora. A filha mais jovem de Maria, aos sete anos, foi estuprada por um estranho, na rua de casa. Júlia, de tanto acompanhar a mãe a encontros conjugais, ali mesmo, entre grades e sob os supostos olhares vigilantes dos "agentes da ordem e retidão", engravidou pela segunda vez antes dos 15 anos. Mas diz, sem certeza, não aceitar nunca ter o rosto inchado pela mão de homem algum, a exemplo da mãe. Questionada, Maria, mais envelhecida que a real idade, diz não saber quem seria a Maria da Penha da lei que tantos, inutilmente, a lembram de invocar. E devolve: "Não seria eu?".