Os hospitais-colônia e a Mirueira
aos "condenados", o isolamento

Os hospitais-colônia foram pensados como depositário de gente. Construídos para ser cidades-satélites em volta de enfermarias, a partir das quais surgiram casas, escolas, igrejas, rádio e até delegacia e prefeitura. Uma vez "condenado" ao hospital, os laços do paciente com o passado eram rompidos de forma bruta. O presente convertia-se apenas no que ali estava. O futuro era o incerto: esperar por uma cura que não se sabia se iria ocorrer, nem quando. Dias, meses, anos... Atravessados os portões, procurava-se esquecer o tempo. Nos bustos, não há datas. Elas também não são encontradas nos quadros com fotos dos ex-presidentes exibidos na parede da diretoria, nem em muitos dos documentos antigos, ainda guardadas nas gavetas.

Em Pernambuco, o depositário de doentes era o Sanatório Padre Antônio Manoel, o Hospital da Mirueira. Por lá passaram pessoas humildes como agricultores e donas de casa, mas também médicos, jovens estudantes, escritores e até crianças. Com medo do preconceito sobre os familiares que ficavam do lado de fora, diversos foram internados com nomes fictícios. Alguns famílias foram internadas juntas; outras pessoas, abrigadas solitariamente para ali fazerem vida nova, talvez casar e adotar novos costumes. Muitos se renderam ao álcool ou enlouqueceram.

Crédito: Teresa Maia/DP/D.A.Press

Quem por lá passou, conta que eram comuns os gritos de dor e desespero. Não pelo físico, mas pelas lembranças do que lá fora estava e que atormentavam a alma. Durante anos, o isolamento foi a única medida adotada para combater o mal de Hanse. Ao contrário do esperado, porém, o número de infectados continuava a crescer, tanto que, na década de 1960, o Brasil ocupava a segunda posição entre os países com maior índice de casos. Essa política foi abolida, oficialmente, em 1962, por um decreto de lei, mas muitos estados continuaram a povoar as colônias com enfermos.

Em Pernambuco, há registro de uma família que, em 1987, foi até a Mirueira entregar um parente para o internamento. Com o tempo, o Hospital da Mirueira mudou o perfil. Tornou-se centro para tratar viciados em drogas e álcool, mas sempre há vagas para tratar hansenianos. Atualmente a Colônia do estado abriga 52 moradores. São ex-internos com direito de ir e vir a hora que queiram. Pessoas que decidiram permanecer,seja pelos laços estabelecidos ou a falta de um destino.

Patrimônio público

O Hospital da Mirueira foi comprado pelo estado em 1936, de uma viúva (Maria Gabini), por 80 contos de réis, e inaugurado em agosto de 1941. A área total correspondia a uma légua de frente e meia légua de fundo. Entre as décadas de 1950 e 1960 a colônia pernambucana chegou a ter 500 pessoas.

Moeda própria

Crédito: Teresa Maia/DP/D.A.Press

Para evitar que os doentes tocassem no dinheiro que poderia vir a ser manuseado por alguém sadio, cada hospital-colônia forjou uma moeda própria. Ao ser internado, o paciente poderia ver convertida as economias que tinha naquelas moedas, ou então adquiri-las através de trabalhos feitos dentro da Colônia. Com ela, fazia-se compras ou pagava-se serviços como o de, por exemplo, um barbeiro ou cabelereiro, que também eram doentes.

Partos clandestinos junto às amputações

Sem métodos contraceptivos, a gravidez se tornava inevitável e o momento de dar à luz convertia-se num pesadelo, acompanhado em silêncio pelos demais doentes. O parto ocorria na mesma casa onde se faziam as amputações e as parteiras eram pacientes que haviam assumido tal função. Ainda inebriada, a mãe tinha apenas alguns segundos para olhar o filho de longe, enquanto, ensanguentado, ele era enrolado em panos para ser levado dali. Ela jamais segurava o bebê nos braços. A criança era então entregue no portão do hospital a alguém que ficaria responsável por enviá-la até o preventório ou à casa de algum parente. Como os partos ocorriam de forma clandestina, não há registros documentais deles. As certidões de nascimento dessas pessoas não dizem em qual maternidade chegaram ao mundo, menos ainda citam a Mirueira.

Crédito: Acervo/DP/D.A.Press

Uma antiga moradora da colônia conta que o medo de que o destino do filho fosse o preventório fez com que uma jovem mãe ocultasse a gravidez. Teria dado à luz em segredo a uma menina. Escondeu-a tão bem que ela nunca contraiu a doença. Anos depois, conseguiu mandá-la embora do hospital para um lugar seguro.

O receio não era apenas em relação ao futuro das crianças. Uma vez separados dos filhos, os pais só voltariam a vê-los muito depois. Em datas como o Dia da Mães, o preventório organizava uma visita ao Hospital. Os filhos chegavam em um ônibus e seguiam direto para o palco do teatro, onde encenavam alguma peça ou cantavam alguma música. Na plateia, os espectadores eram os pais. Ao fim da apresentação palmas, sorrisos e lágrimas. Novamente, nenhum abraço. Eles não podiam se aproximar.

Depois da década de 1960 foi permitido aos pais irem até o preventório. Essas visitas, porém, eram à distância. Eles ficavam do lado de fora. Uma grade os separava dos filhos e o contato também não era permitido.

Uma ausência nunca preenchida

Foto de Ana Maria da Conceição, Dona Ana

Crédito: Teresa Maia/DP/D.A.Press

"Foi ela nascer e enrolaram ela em um pano, em um trocinho de toalha. Eu não tive direito nem de olhar para o rostinho dela"
Ana Maria da Conceição, Dona Ana

"Quando eu me internei já estava grávida do meu primeiro marido. Tive minha menina em fevereiro. Foi ela nascer e enrolaram ela em um pano, em um trocinho de toalha. Levaram para o colégio. Eu não tive direito nem de olhar para o rostinho dela. Sempre perguntava pela minha filha para todo mundo que sabia que ia para lá ou tinha contato com alguém fora daquele hospital. Soube que com oito meses ela já andava...

Um dia pedi para uma pessoa tirar uma foto dela e me trazer. O nome dela era Marilúcia. Era linda.... Não deu 15 dias depois disso e disseram que minha filha tinha morrido de uma doença. Não me disseram que doença foi essa. Não soube de enterro, nunca vi o corpo. Nada... E só fiquei com essa foto dela. Nunca acreditei que ela tenha morrido. Morrido assim... Quando falo dela já começo a chorar... Ela teria 35 anos hoje. Ainda me sinto triste como naquela época. Se chegasse um dia a ouvir a voz dela, se pudesse saber da minha filha... o abraço que eu queria dar nela não é desse mundo. É um abraço com alegria, com tristeza, com tudo"

(***)
Dona Ana faleceu em novembro de 2013 ainda preservando as esperanças de rever a filha. Viveu até os últimos dias em uma pequena casa dentro dos muros do próprio hospital. O velório dela foi realizado no espaço de convivência da Colônia da Mirueira aos olhos daqueles que compartilharam a vida com ela. Pessoas unidas pelos laços de um mesmo carrasco, a hanseníase.

Expediente

Diretora de redação: Vera Ogando
Coordenação e edição: Lydia Barros | Reportagem: Júlia Schiaffarino
Fotografias: Teresa Maia
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