Filhas do silêncio

As irmãs Edna e Edjane Gomes de Oliveira foram para o educandário recém-nascidas. "Minha irmã foi mãe e pai para mim, assim como eu fui pai e mãe para ela", explica Edjane, a mais nova. Os pais delas se conheceram quando estavam internados no Hospital da Mirueira e foi lá que elas nasceram. O laço familiar foi desfeito junto com o corte do cordão umbilical. O reencontro veio apenas 20 anos depois da separação.

"Minha irmã foi mãe e pai para mim, assim como eu fui pai e mãe para ela"
Edjane Gomes de Oliveira

A política do educandário proibia contato dos pais enfermos com os filhos. Em alguns casos, se ocorresse de alguma criança chegar perto, imediatamente era levada para tomar banho, algumas vezes com álcool, conforme relatam ex-internos. Durante esse tempo, o máximo que os pais podiam fazer era observá-las de longe, por detrás das grades que guardavam o Instituto onde as filhas estavam. Visitas das quais Edna e Edjane só tomaram conhecimento muitos anos depois de terem ocorrido.

"Mas se o destino, a ironia das pessoas foi tirar e jogar a gente ao vento, a algo vazio... Então que a justiça seja feita"
Edjane Gomes de Oliveira

Edjane foi a primeira a contar sua história para a reportagem: "A gente aprendia a estar na cozinha logo cedo. Ensinavam a cozinhar para ser empregado da própria diretoria. Muitas vezes fui, com oito ou nove anos, para casa de família servir de empregada doméstica, tomar conta dos filhos delas, sem receber nada. A ameaça era de que se não fosse, ia para o juizado de menor, como algumas meninas foram jogadas lá. Se fizesse alguma malcriação era tapa que levava. Você morar em um orfanato, não conhecer seu pai ou sua mãe, e na infância servir de empregado para eles, é muita humilhação. Quando completei 14 anos me botaram para fora sem eu ter para onde ir. Não me deram nenhum endereço. Nada. Ainda pedi para voltar para o colégio, mas disseram que não podia. Eu não podia nem chegar no portão mais. Procurei um abrigo para dormir. Depois fui para a casa de um meio-irmão que já tinha saído do educandário e morava perto. Consegui encontrar minha mãe muito depois. Ela estava com a perna amputada.

Sempre quis construir uma família. Seria essa a felicidade maior do mundo e é isso o que eu peço a Deus todos os dias em oração. Mesmo os meus pais, com os problemas que tinham, era com eles que eu queria viver. Mas se o destino, a ironia das pessoas foi tirar e jogar a gente ao vento, a algo vazio... Então que a justiça seja feita. Que as pessoas não fiquem impunes por tudo o que passamos. Pelo erro de achar que a gente é um nada, um vazio na vida deles, um lixo. Eu queria que a sociedade e o governo pagassem. Mas infelizmente dinheiro não paga. O que pagaria seria entregar a gente ao pai e à mãe. Era assim que eu queria, me sentir, perto do meu pai e da minha mãe. Não sei se eu seria feliz ou não, mas era isso o que eu queria".

"Minha mãe não falava muito sobre o hospital. Quando começava, chorava, olhava para mim e dizia 'você não sabe o que eu passei para conhecer você e sua irmã'"
Edna Gomes de Oliveira

Com as lembranças ainda acesas e os olhos distantes, Edna começou seu relato: "Com 15 anos me disseram que eu não podia mais ficar no Instituto. Vivi na rua até os 17. Tempo depois, voltei lá atrás de saber quem eram meus pais. Foi quando me disseram "tu tem mãe e tem pai". Eu sabia que eram da Mirueira, mas não sabia se estavam vivos ou mortos. Contaram que minha mãe morava na Torre. Eu estava grávida da minha primeira menina quando encontrei com ela, mas confesso, não tive emoção nenhuma. Acho que já tinha vivido tanta coisa que a emoção passou pela minha vida e eu nem notei. Ainda assim, fiquei com ela nos hospitais antes dela morrer. Conversávamos muito e ela só vivia me pedindo perdão por ter abandonado a gente. Eu perdoei depois de muito tempo. Minha mãe não falava muito sobre o hospital. Quando começava, chorava, olhava para mim e dizia "você não sabe o que eu passei para conhecer você e sua irmã'. Em uma dessas conversas, ela disse que muitas vezes foi visitar a gente. Foi então que eu comentei que lembrava de um dia em que chorei muito e tinha um 'negão' forte tentando se aproximar de mim, mas não deixaram. Foi aí que ela falou que era o meu pai que havia ido lá com ela. Muitas vezes ela foi lá, mas não pode ter contato nenhum com a gente. Eu não sabia. Deixei de ter o amor do meu pai e da minha mãe por causa de uma doença. Hoje, ainda dói. Como eu queria dar a bênção a minha mãe, ao meu pai... Queria apenas que eles pudessem chegar para mim e dizer: 'Deus te abençoe, minha filha'".

Expediente

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