O samba deu vez ao baião


Eternizado | Gonzagão na feira de São Cristóvão: estátua e gratidão


Vim do Norte, o quengo em brasa. Fogo e sonho do Sertão. E entrei na Guanabara, com tremor e emoção. Era um mundo todo novo


Músicas: Baião de São Sebastião (Humberto Teixeira, 1973); Pau de arara (Luiz Gonzaga/Guio de Moraes, 1952); Meu Pajeú (Luiz Gonzaga/Raymundo Granjeiro, 1957)

De saudade, o sertanejo não morre mais. Passagens mais baratas, financiadas em 12 vezes, encurtaram os milhares de quilômetros que separam a caatinga do Sudeste. O comerciante paraibano Aluísio Silva, que chegou no Rio de Janeiro há 43 anos em um pau-de-arara, fica até levemente irritado com a pergunta clichê sobre a saudade da terra natal. "Saudade de quê? Eu vivo lá. Passo um tempo aqui e outro lá no norte. Quando quero, volto para o Rio de Janeiro. Hoje não tem mais isso de saudade", rebate.

Nena Barbosa também deixou a Paraíba há muitos anos. Saiu junto com boa parte da família para tentar a sorte no Rio de Janeiro. Fez a vida na Feira de São Cristóvão, um pedaço do Nordeste encravado no centro do Rio de Janeiro, trabalhando às vezes 14 horas por dia. Diz que hoje não precisaria ter que deixar Boqueirão, na Paraíba. "Existe o Nordeste antes de Lula e o Nordeste depois de Lula", acredita, citando o ex-presidente. "Na minha época não tinha esse negócio de faculdade no interior, de bolsa para pobre estudar. Não tinha nada, nada, nada", diz.

A sobrinha de Nena, formada em pedagogia, veio da Paraíba há quatro anos. Foi ao Rio de Janeiro a passeio, gostou e resolveu se mudar. "É bem relativo essa história de que aqui no Rio tem mais oportunidades. Tem gente da minha família de lá que está bem melhor do que gente daqui", conta Júnia Araújo, 29 anos. "Tentei um concurso público aqui, mas não deu certo. Estou esperando o resultado de um concurso de professora lá na Paraíba. Se eu passar, eu volto".


Paulista é gente boa, mas é de lascar o cano. Eu nasci no Pajeú, mas só me chamam de baiano!


Que saudade? | Aluísio Silva diz que vai ao Nordeste quando quer
Do que Gilberto Galdino Barbosa sente mais falta do Recife é justamente um dos cartões-postais do Rio de Janeiro. "As praias", suspira. "Aqui é mais distante. Tenho que pegar dois ônibus para ir para Zona Sul e demora muito". Gilberto deixou Pernambuco há dez anos. Alvo de gozações, foi adaptando o sotaque para os ouvidos cariocas. "Dizem que não tem preconceito, mas tem sim. Às vezes você fala com sotaque sem querer e já começam a tirar onda", reclama. Além das praias, a outra única saudade que tem é do brega recifense.
"Bregueço ainda existe? E Brega.com?".

A carioca Glória Macedo nunca colocou os pés no Nordeste. Vive cercado dele no ponto de artesanato em que trabalha na feira de São Cristovão. Glória ainda acha que se mudar para o Rio de Janeiro vale a pena. "Para quem não tem muito estudo e quer trabalhar pesado", restringe. Devota de nossa Senhora da Conceição, ela sonha em visitar Pernambuco e a Bahia. "O nordestino pega um pedaço de barro e transforma em arte. Pega uma cabaça e transforma em uma peça de decoração, um novelo de linha em uma renda. É um povo que consegue tirar beleza do nada", admira.



"O nordestino pega um pedaço de barro e transforma em arte, uma cabaça em decoração, uma linha em uma renda. Consegue tirar beleza do nada"
Glória Macedo, carioca que nunca foi ao Nordeste





O rio de janeiro e Luiz Gonzaga


O vencedor | A imagem definitiva do sertanejo
Não foi num pau-de-arara nem carregando um matulão que Luiz Gonzaga chegou ao Rio de Janeiro. Era 1939 e ele acabara de deixar o Exército. A ideia era que a então capital federal servisse apenas como uma parada de espera para o navio que o levaria para o Recife e, de lá, seguiria de volta para o Exu. Levava uma sanfona de 120 baixos, recém-comprada. Um amigo militar, porém, sugeriu: "por que você não vai ganhar dinheiro com essa sanfona, enquanto espera o navio?". Luiz Gonzaga foi e ficou.

Na década de 1940 os programas de calouros nas rádios estavam no auge. O nacionalismo de Getulio Vargas incentivava a descoberta de uma música genuinamente brasileira. Carismático e inovador, trazendo um ar de Sertão para os migrantes no Sudeste, Luiz Gonzaga se transformou em um fenômeno musical. No Rio de Janeiro, morou grande parte da vida no morro de São Carlos, no bairro do Cachambi e na Ilha do Governador. Tinha pela cidade um carinho e uma gratidão que foram expressos do jeito que ele sabia: em forma de música.




Migração

Com o desenvolvimento da indústria no Sudeste, os anos 1940 e 1950 marcaram o início da forte migração de nordestinos para a região. Números mais recentes mostram que esta rota está cada vez mais em desuso. De 1995 a 2000, quase um milhão de nordestinos se mudaram para o Sudeste. De 2004 a 2011, este contingente caiu mais da metade, para 444 mil pessoas. Ainda assim, o Nordeste segue campeão em êxodo. Pesquisa divulgada no mês passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que 53% dos 17,8 milhões de brasileiros que residem em região diferente da que nasceram são nordestinos.