Onde se tira o ganha-pão


Esperança | Valdirene, 20 anos, à espera do terceiro filho e do Bolsa Família


Mas doutô uma esmola a um homem
qui é são...
Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão



Músicas: Vozes da seca (Luiz Gonzaga/Zé Dantas, 1953), A triste partida (Patativa do Assaré, 1964), Alma do Sertão (Adapt. Renato Murce, 1982)

Com uma lata na cabeça e cercada de crianças descalças, Geane de Oliveira, 40 anos, anda na estrada de terra como a imagem cristalizada da pobreza nordestina. Analfabeta e sem emprego, Geane mora em uma das muitas casas de pau-a-pique com antena parabólica que formam a paisagem do povoado de Areia, em Traipu, Alagoas. O espaço de quatro cômodos é dividido com mais sete membros da família. O oitavo está a caminho: a nora, Valdirene Santos Silva, de 20 anos, esta grávida de três meses do terceiro filho. As duas mulheres adultas são as responsáveis por receber a única fonte de renda da família, o Bolsa Família. São os R$ 130 de Geane e os R$ 152 mensais de Valdirene que sustentam a casa.

O marido de Geane, Fernando, não trabalha. Tem sinusite crônica e só planta alguma coisa no roçado da família, de cerca de cinco hectares, quando tem disposição. O filho mais velho, Gilmar, também está desempregado. As duas filhas que ele tem com Valdirene são pequenas e ainda não vão para a escola. Janiely, filha mais nova de Geane, tem dez anos e está na terceira série do ensino fundamental. Não sabe ler, nem escrever. A escola, municipal, estava há uma semana fechada quando o Diario visitou Areia. Nem a merenda é um incentivo para Janiely ir às aulas. "É só bolacha seca com suco", diz.

A casa da família tem uma sala, dois quartos e uma cozinha. O banheiro fica fora da casa e não tem teto. O fogão, de lenha, também fica fora. Para o almoço naquela sexta-feira, feijão e nada mais.

Nesta terceira gestação, Valdirene ainda não fez o pré-natal. Confirmou a gravidez por um teste de farmácia. "O posto de saúde tá sem enfermeira e sem médico", diz. Para ir à cidade, onde saca o dinheiro do Bolsa Família, Valdirene tem que pagar R$ 8 para condução. "Aqui falta de um tudo. Não tem educação, saúde, transporte...", enumera Fernando.

Naquela tarde de outubro em Traipu, Janiely lavava os pratos na expectativa de ir para a missa, na pequena capela a 1km da sua casa. Era o Dia das Crianças e ela, pela primeira vez na vida, ia ganhar um brinquedo. "Dizem que vão dar uma boneca grande para as meninas e um carrinho que anda de verdade para os meninos", contou, ansiosa.

Apesar da miséria, ninguém da família procurou emprego neste ano. "Eu quero é ficar em casa, cuidando das crianças", diz Valdirene. "O dinheiro que recebo dá pra comprar tudo. Comida, as roupinhas delas, calçados...", conta. E se um dia o Bolsa Família acabar, o que você vai fazer? Valdirene fica calada por dois segundos. "Não sei. Passar fome".


Meu sertão vai se acabando, nessa vida que o devora, pelas trilhas só se vê, gente boa indo embora...


Resignação | Geane tem filhos fora da escola e um marido desempregado
A paisagem em volta é bonita, com pasto verde, gado gordo e milharal carregado. No céu, nuvens escuras indicam que a chuva está a caminho. Observando melhor, contudo, há algo de incômodo na rodovia estadual que liga Traipu ao resto do mundo. E não são apenas os incontáveis buracos na pista. Por onde se olha, de um lado ou de outro, casas vazias, abandonadas. Um, duas, três, quatro. Logo a conta se perde. O êxodo tem um motivo. Apesar da terra fértil, Traipu é a cidade mais pobre de Alagoas e sustenta o desconfortável posto de quarto pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil.

A pobreza de Traipu não é aparente. A parte urbana parece organizada, com direito a uma praia às margens do Rio São Francisco. Mas como o caminho para a cidade, nada é o que parece ser. Com a construção da barragem de Xingó, na década de 1970, e que fica a 80km dali, o Rio São Francisco perdeu força e volume ao passar pela cidade. Foi se alargando, característica mais visível de um rio em processo de assoreamento, e bancos de areia se formaram. A pesca, atividade produtiva até então, acabou.

A cidade mal tem saneamento básico. De acordo com censo demográfico de 2010, o mais recente disponível, apenas 10% das residências da cidade possuem esgotamento sanitário adequado. Os dejetos que saem das casas mais próximas do São Francisco atravessam livres a rua e despencam do morro direto no rio.


E a mão é sempre a mesma que vive a me explorar...




48,9% Quase metade da população de 25 mil habitantes de Traipu vive em extrema pobreza, quase 60% sendo na área rural
A pobreza de Traipu não tem relação direta com a seca. A principal avenida da cidade se chama Fernando Collor de Melo, uma homenagem do antigo prefeito Marcos Santos ao seu padrinho político. Ele governou Traipu durante oito anos, período no qual foi detido cinco vezes pela Polícia Federal, acusado de corrupção. Com um dos seus aliados, a polícia apreendeu 200 cartões do Bolsa Família.

Quando Marcos foi afastado do cargo por improbidade administrativa, quem assumiu foi a nora, Julliany Tavares. Cinco meses depois, ela também foi afastada pela Justiça Federal, por suspeita de corrupção. Na eleição de outubro, a vitoriosa foi Conceição Tavares, presidente da Câmara que assumiu a função de prefeita depois de Marcos e de Julliany. Em maio deste ano, foi a vez da própria Conceição deixar o cargo por conta de ilegalidades em convênios da Previdência Social com a prefeitura. Não há nada de novo em Traipu.







Vozes da seca

Em 1953, houve uma grande seca no Nordeste. No Sul do país teve início então a campanha Ajuda teu irmão. "Nós (Luiz Gonzaga e Zé Dantas) não gostamos dessa coisa, achamos que aquilo era um exagero, um esculacho, era uma política errada, de pedir esmola para ajudar o nordestino. E por aí apareciam muitas e muitas explorações. E tinha um jingle que dizia 'ajuda teu irmão, dá não sei o que...., manda uma calça velha, manda um sapato, manda um dinheiro, manda comida, manda esmola, mesmo que seja uma esmola!'. Aí nos caímos no protesto. Esmola não!", contou Luiz Gonzaga em 1971, em entrevista ao colecionador Genival Silva.

Em resposta a Ajuda teu irmão, surgiu Vozes da seca, uma das músicas mais incisivas sobre a pobreza nordestina. Luiz Gonzaga e Zé Dantas não só criticam a ação do governo - naquela época, presidido por Getulio Vargas - como dão sugestões para acabar com a indústria da seca: "Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage/ Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage".