Estratégia | Para as mulheres,
a principal regra da paquera é evitar
ficar "falada"
Pouco antes das 22h, as primas Flávia Maria e Jucicléia Maria estão em frente à entrada da festa dos vaqueiros na fazenda São Miguel, em Serra Talhada. Maquiadas, com calças jeans justas e cabelos escovados, as duas tentam adivinhar quem vai aparecer na festa daquela noite quente de outubro. Francisco das Baixas, o vaqueiro mais bonito das redondezas, não chegou ainda. Nem deve ir: a namorada nova é ciumenta. Solteira de vinte e poucos anos, Cléia é uma sertaneja desconfiada, que não gosta de multidões. Flávia trabalha na cidade, namora há pouco tempo e só vai para o sítio nos fins de semana. As duas são nossas primeiras guias pelos caminhos da paquera e namoro no Sertão.
"Você dança com ele uma vez. Se gostar, fica olhando, ele olha para você. Aí dança de novo, troca celular e pode até sair um selinho"
Jucicléia Maria,
ensinando a técnica de conquista
Ainda do lado de fora da cerca que separa a rua da festa, as duas começam a desfiar o rosário de regras da paquera. "Não é difícil de arranjar namorado", encoraja Flávia, para surpresa das mulheres da capital. "Mas quem for muito exigente...". A primeira regra é bem clara: mulher não chama homem para dançar. "Nunca. Ele fica convencido", diz. Se quiser dançar com um menino "você joga charme, troca olhares, passa na frente dele. Você fica olhando, olhando, olhando... até ele pedir", explica Cléia. Para as comprometidas, o aviso: não se deve dançar com outro rapaz, mesmo se o namorado estiver presente na festa.
Beijo no primeiro encontro? "Qué qué isso! Aqui pra rolar um beijo tem que rolar muito papo antes!", explica Flávia. "Se a menina fizer isso, leva o nome de fácil", continua. "Eles querem, tentam agarrar e tal, mas a gente deixa não. Dormir na primeira noite? Qué qué isso! Se o menino vai dormir na casa da menina, mesmo sendo noivo, ela dorme aqui e ele lááááááá longe!", diz. O primeiro beijo aparece mais ou menos assim: "Você dança com ele uma vez. Se gostar, fica olhando, ele olha para você. Aí dança de novo, troca celular e pode até sair um selinho", conta. "Pode ter um beijo sim... mas roubado", admite Cléia, fazendo o sinal das aspas com as mãos na última palavra: os outros é têm que pensar que foi roubado.
Ela só quer, só pensa em namorar...
Músicas: Xote das meninas (Luiz Gonzaga/Zé Dantas, 1953), Baião dos namorados (Sylvio Moacir de Araújo, 1955), Numa sala de reboco (Luíz Gonzaga/José Marcolino, 1964), Romance matuto (Luiz Bandeira, 1979)
Quando a moça quer se casar, não reza somente não. Ela arranja um namorado e entrega o coração
O forró começa e as meninas entram na festa. Ingresso a R$ 2 para mulher e a R$ 10 para homem. O palco é comandado pelo trio Amantes da Vaquejada, com voz, sanfona e um teclado, que faz as vezes de vários outros instrumentos ao longo da noite. As músicas que tocam são os sucessos do momento nas rádios - que pode ser funk, pagode, sertanejo, pouco importa. Tudo pasteurizado na mesma batida ondulada. Além dos hits, o trio toca as músicas do cantor que é o maior sucesso das vaquejadas, o alagoano Mano Walter. "Ele é lindo", suspira Flávia. "É bonito demais isso, é a vida da gente", se emociona Leandro Gomes, organizador da festa, ao ouvir a bandinha tocar Saga de um vaqueiro.
No espaço da festa, de terra batida e sem cobertura, há uma clara divisão entre homens e mulheres, e dos que foram com amigos e dos que foram com a família. Os homens não circulam muito. Os que querem dançar e paquerar vão para frente do palco. Os outros ficam atrás, bebendo e comendo - os organizadores da pega de boi mataram dois animais, jantar incluído no preço.
Nosso amor pede mais fuga do que essa que nos dão...
Sem dar bola para as regras de recato seguidas por Cléia e Flávia, três meninas dançam sensualmente na frente do palco. As irmãs Daniela, 16 anos e Maria José Lopes, de 23, e a amiga Luciana Santos, 16, destacam-se pela roupa igualzinha que usam, com blusas rosa-choque e minúsculas saias pretas. A explicação: "Compramos na mesma loja para esta festa. A gente tem um grupo de dança, o Paredão", conta Daniela, orgulhosa, puxando para baixo a saia que teima em subir.
Jecivaldo de Barros é de Santa Maria da Boa Vista e está achando a dança no terreiro muito engraçada. "Elas dançam de um jeito diferente (apontando para o Paredão). Eu danço na cidade, mas aqui é fogo. As meninas não acertam o passo", reclama, sem tentar se aproximar de nenhuma delas. "As meninas chamam pra dançar, sem chamar: chegam perto e perguntam para meu amigo: E por que ele não dança?", diz. "Eu tenho namorada, mas isso não me impede de dançar".
O amigo, Jovenil Vital Pires, toma uma atitude. Vai até o Paredão e, sem nenhuma conversa, pega no braço de Daniela e começam a dançar, bem agarradinho, com os quadris ondulando ao som da batida da música.
O namoro e Gonzaga
Quando era adolescente, Luiz Gonzaga acompanhava Januário como segundo sanfoneiro nas festas em que o pai tocava. Um "mulato beijador", como se definia, Luiz Gonzaga também era um observador atento dos preconceitos do Sertão. "Me doía uma coisa naquelas festas. A separação dos chamados brancos, que se isolavam num salão, enquanto os moradores ficavam na latada. E o critério de cor variava com a fortuna", contou Luiz Gonzaga na década de 1960 ao jornalista Sinval Sá, autor da biografia o Sanfoneiro do Riacho da Brígida.
Assim como acontece em 2012 na zona rural de Serra Talhada, havia um grande receio nas jovens mulheres de 1920 de ficarem "mal faladas". Moças pobres que iam para festas nas casas dos patrões não eram bem vistas. "E havia delas mesmo que pegavam de namoro com os moços, namoros aparentemente sérios, mas que todo mundo sabia a que levavam. Logo estavam na boca do mundo, faladas, repelidas pelos que delas tinham colhido os melhores frutos e pelos de seu nível, ressentidos com a desfeita".
Namorador, na juventude Gonzaga teve alguns noivados, todos terminados pela mãe Santana, que se enfurecia quando sabia das promessas de casamento infundadas do filho. O mais conhecido foi com Nazarena Saraiva Milfont, moça branca de família com certas posses. O padrasto, o "coronel" Raimundo Delgado - "moreno, embora tido como branco", lembra Gonzaga na autobiografia - não gostou do namoro da enteada com um sanfoneiro negro sem eira nem beira. Bêbado e armado com uma faca, Gonzaga foi tomar satisfação com Raimundo na feira do Exu. Dona Santana ficou revoltada com a atitude do filho e terminou mais um "noivado" de Gonzaga, desta vez com direito a uma surra que o fez fugir do Araripe e se alistar no Exército. O resto é história.