No caminho certo da cartilha do ABC





Na estrada | Alunos do Nordeste enfrentam longas jornadas em busca do conhecimento
Nos anos 1940, o Brasil tinha uma população de mais de 41 milhões de habitantes, com uma taxa de analfabetismo superior a 56%. Hoje, são 12,9 milhões - ou 8,6% - de brasileiros com mais de 15 anos de idade que não sabem ler nem escrever. Um número que se revela mais sombrio na região Nordeste: é aqui onde estão 6,8 milhões dos analfabetos brasileiros. Uma taxa de 16,9%, quase o dobro da média nacional - quase três vezes maior que o Sul e o Sudeste. Ainda que lentamente, os dados mostram que o Nordeste avança: há oito anos o índice de analfabetismo dos nove estados era de 22,4%.


Olhando o céu sertanejo em uma noite de luar, qualquer um pode dizer que há mais estrelas por lá. De tanto olhar para elas, Jackson Alves da Silva Melo, de 16 anos, se apaixonou por astronomia. Devora sites, revistas e livros sobre o assunto. No ano passado, o estudante de Carnaíba foi o primeiro colocado na Olimpíada Pernambucana de Astronomia. Ganhou como prêmio uma viagem de uma semana a São Paulo, onde participou da VII Jornada Espacial, e um notebook. Virou o orgulho da escola e da cidade.

Pois eu não quero
fío meu analfabeto (...)

Eu mesmo
nunca tive essa sorte,
mas eu luto inté a morte,
móde eles aprender


Carnaíba, Pernambuco


Músicas: Acordo às quatro (Marcondes Costa, 1979); ABC do Sertão ( Zé Dantas / Luiz Gonzaga, 1973)


Os pais de Jackson vivem em um distrito distante 20 quilômetros do centro. A mãe é dona de casa e o pai agricultor. Quando a roça não dá frutos, o pai passa longas temporadas trabalhando como pedreiro em São Paulo, como neste ano, em que a seca levou tudo. O dinheiro certo do orçamento familiar é o da Bolsa Família. No início do ano, apertado, o pai de Jackson resolveu que o filho iria trabalhar. Poderia estudar à noite, se quisesse. Jackson não deu uma palavra contra. Aceitou a decisão do pai e deixou a escola de ensino integral.

A mudança soou o alerta dos professores da escola de referencia Joaquim Mendes da Silva, que foram conversar com os pais do aluno. "Eles disseram tantas coisas boas de Jackson. Que era tão importante ele estudar. Ele ficou calado, disse que faria o que o pai dissesse. Eu disse: 'a gente come farinha pura, mas ele continua a estudar. Temos que ajudá-lo a ter um futuro melhor'", conta a mãe Maria Eunice de Melo.

Para dar condições do filho se dedicar aos estudos, o pai foi para São Paulo. Com o notebook que ganhou nas Olimpíadas de Astronomia, Jackson navega na internet em busca do conhecimento que não encontra nos livros da biblioteca da escola. Quando o dinheiro do Bolsa Família chega, R$ 35 já têm destino certo: é para o para o pagamento do provedor de internet.

Enquanto lê sobre o universo, Jackson traça planos. O mais imediato deles é a aprovação no vestibular para engenharia mecatrônica da Universidade de Pernambuco, no Recife. Sem parentes nem amigos na capital, a mãe torce para que ele encontre uma vaga em uma casa de estudante. Na escola ou em casa, Jackson faz sua parte: estuda o dia todo, com os olhos vidrados nas estrelas e em um futuro melhor.


Lá no meu Sertão pros caboclo lê, tem que aprender um outro ABC
Canindé de São Francisco, Sergipe

É quase meio-dia no acampamento sem-terra Quixabeiras. Com roupas puídas e uma bolsa cor de rosa nas costas, Marta chega da escola devagar, olhando as pessoas estranhas que estão no seu barraco com teto de lona e piso de chão batido. Olha sem medo e com um sorriso. Marta, de oito anos, é a única menina entre os cinco filhos do casal de sem-terra José e Gisleide da Silva Silvestre. Assim como os irmãos, ela nunca morou em uma casa de alvenaria. Tudo que conhece como casa é um barraco como aquele, que, de tempos em tempos, muda de cidade. Marta está no primeiro ano do ensino fundamental e não sabe ler. Nem Thaís, a vizinha de 15 anos, que abandonou a escola há seis meses na quinta série do ensino fundamental.

Já passa de meio-dia. O ônibus escolar que vem pegar Davi, o filho mais velho, deve chegar em breve. Aos dez anos, Davi é o único na família que consegue juntar as sílabas e pronunciar palavras. Senta na cama do único quarto da casa, pega o material escolar - um livro xerocado - e começa a ler sobre a história de um galo e um figo. Um figo, em Canindé do São Francisco, município sergipano às margens do São Francisco. "Figo? Figo é figo, é o figo do galo", explica o menino, que junta as sílabas, mas ainda não sabe ler.


Primeiras letras | Davi, 10 anos, é o único da família que junta as sílabas
Em casa, a mãe acha que Marta ainda é muito novinha para já saber ler. Aos oito anos, a bonequinha de olhos verdes escreve o nome como quem desenha. Isso é mais ou menos o que o pai e mãe fazem. E somente isso: sabem apenas escrever o nome para poderem votar.

Na espera pelo ônibus, Anna Vitória, de 14 anos, é maquiada por Thaís. "Todas as meninas vão assim para a escola", conta. Vitória diz que gosta de estudar, sabe ler bem, tira notas boas e pensa em entrar em uma faculdade. "Mas ela sofre muito, a bichinha. Vai para a aula quando pode, porque tem os irmãos para criar. Ela ajuda a mãe na roça e falta muito as aulas", entrega Thaís. Vitória sorri. Hoje, ela vai para a escola.

O ônibus chega. Davi está comendo um pacote de pipoca e os pais não percebem que já é hora de ir para a aula. Davi se levanta da cama, pega o caderno e corre para o ônibus, que já está de saída. Na escola municipal, as crianças brincam de jogar bola na quadra enquanto as aulas não começam. O imóvel espaçoso, com azulejos, pintado e limpo é uma quebra na paisagem de crianças que passam os dias em barracos de lona com piso de terra batida.

O diretor da escola, Felipe Gomes, admite que o material didático está bem longe da realidade dos alunos. E que alunos podem chegar até a terceira série do ensino fundamental sem saberem ler. "É uma indicação do Ministério da Educação para não reprovar esses alunos. Dar uma chance a mais", diz. Desde que o Bolsa Família foi implantado, a evasão escolar é baixa. "A escola funciona como um refúgio do trabalho e da miséria".






O papel da sociedade | Marta e os irmãos têm acesso ao que seus país não conseguiram: poder frequentar uma escola. Além da merenda, espaço representa o primeiro passo para construir uma vida fora da miséria. Mas eles ficam no barracão