Vale mais do que ouro


Valentes | Vaqueiros encourados na lida na caatinga estão em extinção


No meu sertão, armadura é gibão de couro...


Músicas: Vida de vaqueiro (Luiz Gonzaga, 1960), A Morte do vaqueiro (Luiz Gonzaga/Nelson Barbalho, 1963), Vaqueiro véio (João Silva/J. B. de Aquino, 1972), Lulu Vaqueiro (Nelson Valença, 1971), Gibão de Couro(Luiz Gonzaga, 1958), Riacho do Navio (Luiz Gonzaga/Zé Dantas, 1955)

Certa noite, um emissário de Lampião bateu apressado na porta de Raimundo Seleiro, nas brenhas do Sertão do Inhamuns, no Ceará. Trazia consigo uma mensagem urgente embrulhada em um papel: o desenho de um sandália de sola quadrada. Toda quadrada. O cangaceiro queria que Raimundo, conhecido pelo Sertão afora pela habilidade com o couro, fizesse daquele desenho um calçado para que seus inimigos, ao verem as pegadas, não soubessem para que direção ele seguia.

Raimundo fez a sandália e enviou para Lampião. Colocou nela o desenho em forma de S que décadas depois iria aparecer em desfiles de moda, ser exportado para a Europa e copiado em quase todas as feiras do Nordeste, graças à habilidade do filho mais velho, Espedito Veloso de Carvalho, o Espedito Seleiro.
Tal qual a sanfona, o ofício do couro era passado de pai para filho. Hoje com 73 anos, aprendeu com o pai e o avô todas as etapas da produção: desde matar o boi, retirar o couro, curti-lo e transformá-lo em sela, gibão, perneira, peitoral, luvas, o traje completo do vaqueiro.

No começo da década de 1970, estabelecido em Nova Olinda, do lado cearense da Chapada do Araripe, Espedito vivia para o vaqueiro - e este estava em falta. "Os vaqueiros foram desaparecendo. Cigano sumiu, cangaceiro também. Ninguém comprava mais sela. Eu ia oferecer na cidade e diziam: 'sela? Mas sela já tem é muita aqui' e pediam um preço menor. Tive que mudar meu estilo", lembra.

Com seis irmãos mais novos nas costas, Espedito recorreu à memória do trabalho do pai. "Meu pai era meio aciganado. Gostava de umas coisas coloridas e na época não tinha tintas. A gente pintava com casca de angico, casca de pau-ferro, ferrugem e rapadura preta". Espedito se apegou às cores, remodelou o S e criou seu estilo único.

Com as vendas para fora da região, veio também uma exigência curiosa: "O pessoal não gosta muito do cheiro de couro. Diziam: 'ah, essa bolsa é bonita! Mas esse cheiro....'", conta. A solução foi usar um couro com tratamento químico que vem do Juazeiro do Norte e do Rio de Janeiro. "Mas eu gosto do cheiro. E o que mais gosto de fazer é sela para vaqueiro".


Do museu... | Espedito Seleiro está preocupado em manter a memória do couro no Nordeste


...para o palco | Aprijo Lopes fazia os trajes de Luiz Gonzaga e agora é procurado por artistas de forró
Na pequena Nova Olinda, a colorida loja/oficina - decorada com uma máquina de costura de quase 200 anos e uma sela da bisavó - é atração turística, com placas espalhadas pela cidade. Trabalhando todo dia a partir das 4h, o estilista do Sertão se prepara para abrir um pequeno museu. "O ofício do couro está se acabando. É preciso guardar um pouco do que se ainda tem".


Ver as pegas de boi, correr nas vaquejadas...

O Sertão moldou o vaqueiro nordestino. Puxar o boi pelo rabo e derrubá-lo no chão foi o jeito encontrado para vencer a estreiteza da caatinga, sem brecha para o uso do laço. O trabalho virou diversão nas vaquejadas e pegas de boi, que continuam sendo uma exibição "de força ágil, provocadora de aplausos e criadora de fama" no interior do Nordeste, como escreveu Câmara Cascudo em 1939, no livro Vaqueiros e cantadores.

Vizinha ao sítio onde Lampião nasceu, distante 30 quilômetros do centro de Serra Talhada, está a Fazenda São Miguel, onde as pegas de boi brabo duram o dia todo, com muita bebida antes e depois. Para se proteger dos espinhos do mandacaru e da macambira, terno completo de couro - comprados nas feiras por no mínimo R$ 600. Só não há nada que proteja o rosto. E aí é preciso se abaixar e galopar colado ao pescoço do animal. "De vez em quando tem um acidente. Clavícula quebrada, braço, perna", lembra Adelmo Bezerra, o Demo Ramalhete, vaqueiro vencedor de uma das pegas de boi que o Diario acompanhou.

Um dos melhores vaqueiros daquela região é Bruno Clementino dos Santos, de 26 anos, na lida desde os 15, que trabalha cuidando dos animais da propriedade da família, na fazenda de Raimundo de Cazuza. "Só faço dar comida a vaca véia magra, com essa seca. Mandacaru, macambira, farelo quando tem". Vez ou outra leva um cavalo para ser vendido, mas é raro. "A gente pega uma rês por R$ 30, coloca os arreios e leva para o curral". O terno de couro é usado mais para a diversão. "Tem que ter agilidade. Senão, bate no pau e lá fica. Aprendi por conta. Peguei o jeito e passei para frente", diz. No dia a dia, usa uma moto, comprada há dois anos. Mas nada substitui a cumplicidade que tem com o cavalo. "Meu sonho de toda a vida foi cavalo. Quando ele pega o jeito, se entrosa com o vaqueiro, é como se fosse um
corpo só".




Luiz gonzaga e o couro

O encontro de Espedito Seleiro com Luiz Gonzaga, um apaixonado por couro, aconteceu em Nova Olinda, em 1985, na inauguração do Recanto Clube. Gonzagão, já doente, recebeu o artesão depois do show, gostou do que viu e foi na oficina no outro dia. Encomendou uma bolsa. Colorida, com correia longa, a bolsa Gonzagão é um dos sucessos de venda da loja de Espedito - ao lado da bolsa que fez para a grife paulistana Cantão, das mochilas de camurça e das inconfundíveis sandálias feitas inteiramente de couro, sem plástico nem nos detalhes, algo raro hoje em dia.

De 1982 até a sua morte, em 1989, Luiz Gonzaga tinha um artesão quase que exclusivo. Quando voltou para morar em Exu, o Rei do Baião quis logo saber onde havia alguém na região que trabalhasse bem o couro. Encontrou o conterrâneo Aprijo Lopes em Ouricuri. Como acontecia sempre que encontrava uma pessoa do seu agrado, Gonzaga quis que Aprijo crescesse. Comprou máquina industrial - na época, caríssima - e, cliente exigente, levou Aprijo a ir além dos seus limites. "Ele dizia como queria as cores, dava opinião nos desenhos. Ele pedia detalhes que eu nunca tinha feito antes", lembra o artesão, que hoje trabalha ao lado do filho, o talentoso Romildo, e mais quatro funcionários.

Por mais ou menos R$ 1,5 mil dá para comprar um dos belíssimos gibões trabalhados em couro de Aprijo e Romildo. Não é para vaqueiros. "É mais artista que compra, para usar em show", diz Romildo, na oficina em Ouricuri, cercada de fotos de cantores de forró. Da caatinga, o gibão migrou para os palcos.