Desde que o mundo é mundo, que a muié tem que passar por esse pedacinho
Música: Samarica parteira
(Zé Dantas, 1974)
Tia Joana respira fundo e pergunta: "Posso começar a contar minha história?". Dá uma pausa dramática, fecha os olhos e levanta as sobrancelhas. A respiração dela para. Quando parece que vai receber uma entidade além vida, Tia Joana começa a falar ritmicamente, mudando palavras e criando outro sentido para aquelas já conhecidas. Aos 64 anos, Joana Joventina da Conceição é a única parteira ainda em atividade no quilombo Conceição das Crioulas, em Salgueiro. Pelas contas dela, foram mais de mil partos realizados na região, isolada da cidade por 40 quilômetros de estrada de terra batida, com caatinga de um lado, caatinga do outro.
Em toda sua vida, tia Joana foi para o médico três ou quatro vezes. Não sabe ler e nunca se casou. Teve três filhos. "Graças a Deus nunca tive isso de marido. Amor é bicho desgraçado. Eu nunca tive paixão, parece que não era para mim. A vida que era de eu passar e que tô passando era essa mesma". E a vida quis que ela ajudasse a trazer ao mundo os filhos e netos de boa parte do quilombo - por isso todo mundo a chama de "tia" Joana.
A mãe morreu quando Joana tinha 15 dias de nascida e ela foi criada pelo pai. Com ele aprendeu a curar pelas orações. "Sei reza de garganta, de queimadura, de espinhela". As rezas são 100% garantidas e contam com um insuspeito ingrediente. "Eu rezo e dou um remédio". "Mas que remédio, dona Joana? A senhora faz de que planta?", pergunto. "Não, compro na farmácia". É também médium, desde que se conhece por gente. "Tem dia que passo o dia todo fazendo reza. Quando chega de noite estou descambixada. É tirando o mal dos outros e colocando n'eu".
O trabalho de parteira, que faz há mais de quarenta anos, é visto como um dom. "Eu sonhei que minha avó era parteira, a mãe do meu pai. Ela mesma fazia o parto dela, não precisava de outra. Quando pensavam que ela tava de bucho, já estava com o menino na rede, lavando os paninhos. Aí o sonho dela veio para eu", conta. De início, ela recusou a vocação. "Olhando uma parteira que tinha aqui, chamada Margarida, eu dizia 'Deus me livre, quero nada! É perigoso. Eu garantir sua vida e depois não garantir?'".
Um dia Margarida se escondeu e tia Joana teve que fazer o parto sozinha. "Vocês sabem o que é peneirar milho de peneira? Eu era desse jeitinho, peneirando as mãos, com medo, porque eu nunca tinha pegado em menino, só ajudava", lembra. "Quando ela chegou eu disse 'vá olhar se eu fiz bem feito ou não fiz'. Ela me respondeu que eu não era cega, nem aleijada e que o ramo era meu".
Aproveite a dor, minha fia. Aguenta nas oração, muié
Sabedoria e ciência | Conhecida como Tia Joana, ela reza e também dá remédio, comprado na farmácia
"Sou garantida. Nunca perdi nem menino, nem mulher. Nunca morreu nada nessas mãozinhas aqui"
"Sou garantida. Nunca perdi nem menino, nem mulher. Nunca morreu nada nessas mãozinhas aqui". A boa fama de tia Joana correu a região. De dia, noite ou madrugada ela era chamada para fazer partos de "homem, mulher, porco, cachorro ou vaca" e ia do jeito que dava. "Andei em carro sem luz, trepava em jumento, de bicicleta no meio da noite. De ir a pés". Na maioria das vezes, sem receber um tostão.
O único posto de saúde de Conceição das Crioulas, que tem cerca de três mil habitantes, foi inaugurado em meados da década de 1980. Um médico e uma enfermeira dão plantão na unidade, mas não realizam partos. Se não for pelas mãos da parteira, as mulheres têm que ir parir em Salgueiro. Nos últimos cinco anos, o trabalho de tia Joana foi profissionalizado. Ela participou de ações na Organização Não-Governamental Curumin, no Recife, e fez um curso de dois meses na maternidade de Salgueiro. "Mesmo sem saber ler, passei em tudinho. Tenho todo o medicamento hoje: luva, tesoura".
Sem seguidoras, tia Joana vê sua profissão caminhando para a extinção no quilombo. "Ninguém mais quer fazer o que eu faço, porque não tem coragem. Como vou garantir uma vida e depois não garantir mais? O negócio é seríssimo".
Filhos e netos | Crianças que vieram ao mundo no quilombo, na sua maioria, foram pelas mãos da parteira