De tudo que há no mundo


Botando banca | Por dia, feira na Capital do Agreste movimenta R$ 1 milhão em artigos produzidos na região


Uma depressão trouxe dona Eunice Sabino à feira de Caruaru, 30 anos atrás. O sonho de ser jogador de futebol pegou Hugo Souza pela mão e o levou a carregar sacolas até a casa dos clientes. O velho Abdias fica por ali importunando conhecidos e desconhecidos, fumando, ansioso por mostrar as dez músicas que compôs nos últimos três anos. Seu José Medeiros vende e ama o fumo - o que, para família Villanova, é estritamente trabalho. Maria Edilene Pereira colocou os dois filhos na faculdade vendendo promessas de noites mais picantes. Hipérbole, a Feira de Caruaru é um formigueiro labiríntico de sonhos, expectativas e quase tudo que há no Nordeste que se possa vender e comprar.


Qué pra matuto não andar nu

A vitrine é ousada: calcinhas de fio dental, fantasia de enfermeira, sutiãs transparentes. Edilene montou sua lojinha de peças íntimas há mais de 15 anos, depois de passar uma década trabalhando como ambulante. O pico de vendas veio há poucos anos, quando montou uma sex shop de tamanho mínimo em uma das prateleiras. "O óleo quente e o óleo frio para massagem são os produtos mais vendidos da loja", diz. A maioria da clientela é formada por mulheres. "Elas que tomam a iniciativa para salvar os casamentos", acredita. Com o dinheiro de fantasias, Edilene colocou os dois filhos na faculdade e em breve vai ter um biólogo e uma administradora na família.


Tem cesto, balaio, corda, tamanco, greia, tem boi tatu


Na corda | Fumo de José Medeiros é artesanal
"Sou mais velho que o velho. Nasci em dez do cinco de trinta e cinco", conta Amaro Ibúcio da Silva. De bicicleta, carrega as compras dos fregueses para os bairros vizinhos. Trabalha como carregador há mais de 30 anos. Há seis, teve sua maior conquista: comprou um ponto na feira, onde vende garrafões de água mineral que ele mesmo entrega. "Paguei em dinheiro vivo, juntando os trocados do frete", diz seu Amaro.

Uma de suas clientes mais antigas é dona Eunice Sabino, uma senhorinha pequena e de fala mansa, que comprou o ponto de artesanato para se curar de um coração partido. "Depois de três décadas de casamento e 12 filhos, meu marido me deixou para casar com outra", lembra. Morto há cinco anos, o marido era violentíssimo. "Esse olho aqui eu mal abro por causa de um murro que ele me deu. Eu fui atrás dele, que tava com outra, e ele não gostou", diz, entre delicadezas de rendas e bordados. "Hoje eu passo os dias por aqui, mas as vendas não andam boas. Isso tudo que eu vendo tem em shopping, em loja grande, quem vai querer vir até aqui?".

Também carregador de feira como seu Amaro, Hugo tem 16 anos e um sonho: ser jogador de futebol. O dinheiro da feira é para ajudar em casa - o pai morreu quando ele era bebê - e pagar suas pequenas diversões, como o videogame na lan house. "Joguei na Série B dos juniores do Pernambucano. Ano que vem quero ver se jogo de novo", diz o lateral, esperançoso.


Tem fumo, tem tabaqueiro

São duas barracas uma do lado da outra. Em uma, seu José Medeiros, 70 anos, fumante inveterado, vende o fumo e enrola o cigarro do cliente na hora. Nada de cigarros industrializados. Fumante desde os 12 anos, mal tem um dente na boca, mas defende o seu vício. "Nunca me fez mal", acredita. Abdias é um cliente fiel: todo sábado bate ponto na feira. Gosta de cantar suas músicas de dor de cotovelo para quem se aproxima da barraca de seu José. "Um dia alguém vai me ouvir e vou gravar um disco pela Globo", sonha. Na barraca ao lado, a pragmática família Villanova - mãe e dois filhos - se dedica a vender pacotes de cigarros de diversas marcas, sem nunca ter colocado um cigarro na boca. "A gente vende, mas não usa", diz Carlos, o filho mais velho.







A feira de seu Onildo e Luiz Gonzaga

Bastam três minutos de conversa para saber que Onildo Almeida é um apaixonado pela cidade em que nasceu. "Caruaru era também a cidade favorita de Luiz Gonzaga", diz, num evidente exagero - Gonzagão sempre foi louco de paixão por Exu. Pelas contas de Onildo, A Feira de Caruaru tem mais de 50 regravações, sendo 34 de artistas estrangeiros, mas foi somente na voz de seu Luiz que se tornou um clássico. Onildo compôs a música em 1956, quando trabalhava na rádio Difusora. "Eu gravei porque não tinha quem gravasse. Eu queria Jackson do Pandeiro, mas ele já tinha viajado para o Rio de Janeiro. Naquela época ninguém gravava baião, só Luiz Gonzaga. Aí eu mesmo gravei e vendemos toda a edição do disco".

A Feira de Caruaru, faz gosto a gente vê

Música: A Feira de Caruaru (Onildo Almeida, 1957)

No final de 1956, Luiz Gonzaga foi em Caruaru fazer um show no auditório da Difusora. "Meu irmão foi na radiola e colocou meu disco para tocar. Luiz Gonzaga estava nos corredores e ouviu. Foi na discoteca e começou a ouvir A Feira. Quando terminou, ele perguntou: 'de quem é isso?'". O irmão de Onildo, José Almeida, levou Gonzaga até a área técnica, onde o compositor trabalhava. "Ele chegou e disse: 'isso é seu, caboclo?'. Por que não me mostrou antes?'. Eu disse: 'está em suas mãos'".

A gravação de Luiz Gonzaga saiu no ano seguinte em um disco de 78 rotações, com A Feira de Caruaru de um lado e, do outro, Capital do Agreste, de Onildo e Nelson Barbalho. Vendeu 100 mil cópias em nove meses. "Nem Asa branca tinha vendido tanto na época, de forma tão rápida", diz o autor.

Cinquenta e seis anos depois da primeira gravação, a feira inspiradora mudou bastante. "Agora é que ela tem tudo mesmo! Ferro velho, ferro novo, ferro de engomar, é o escambau! Mas hoje, por exemplo, não tem mais alfinim (um doce feito de cana de açúcar)!", diz. "Em 1967 eu fiz a Feira de Caruaru número 2, quem gravou foi Marinês. Mas não ficou muito conhecida. Posso fazer dez, vinte versões, mas não tem jeito: só a primeira ficou e fez sucesso".





A maior de todas

Atualmente a Feira de Caruaru ocupa 40.000 m2 no Parque 18 de Maio. É autointitulada a maior feira do mundo e movimenta em média R$ 1 milhão por dia, podendo aumentar nas terças-feiras e sábados. No primeiro dia, pelos sitiantes que vão à rua vender seus produtos. O outro pelos preços mínimos dos artigos da feira da Sulanca, que acontece na madrugada e ao amanhecer já está indo embora. Em 2006, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) declarou a feira como patrimônio imaterial do Brasil.